Finalmente, chegou a tão esperada sexta-feira.
Os três estavam indo até
a vara da família no carro de Diego. Ele, Marcelo e Mayara, que estava sentada
no banco de trás. A moça ficou horrorizada de ouvir o relato do que Paulo tinha
contado ao irmão na madrugada do dia anterior.
– Ela deu um beliscão nele?
Que mulher horrível! – Marcelo, que dirigia, concordou com um gesto de cabeça.
O marido, sentado ao seu lado, apertava o envelope com toda a documentação de
guarda em um reflexo nervoso.
– Rosário disse que ia
nos encontrar na porta do prédio e que não precisamos nos preocupar, o que
aquele conselheiro tutelar fez, foi ilegal. – ele comentou enquanto fazia uma
curva para esquerda no sinal.
– Eu fui tão idiota de
deixar aquela mulher levar o Paulo embora... – murmurou Diego, desolado
enquanto olhava pela janela, vendo as fechadas dos prédios passarem, quando
sentiu a mão delicada de Mayara apertar seu ombro com leveza, enquanto a moça
dizia.
– Não foi culpa sua, ela
apareceu com a polícia. Mas hoje vamos trazer ele de volta pra casa e esse
pesadelo vai terminar. – avistaram o prédio e logo Diego reconheceu Rosário, em
pé próxima a entrada, trajando um terninho azul marinho e com uma pasta nas
mãos. Quando eles estacionaram, ela acenou para eles.
– A juíza é a mesma que
assinou a documentação de guarda do Paulo, então, não teremos muitos problemas.
Mas eu quero é ver aquele conselheiro tutelar levando uma erguida. – comentou
Rosário com certo amargor na voz.
– O homem vem misturando
trabalho e religião há anos, só que dessa vez ele passou dos limites! Eu vou
gostar de ver ele levar uma bronca da juíza e talvez até um afastamento. Me
desculpem, eu não sou rancorosa, mas ver uma pessoa manipular informações que
influenciam na vida de uma criança por motivos tão mesquinhos quanto “minha religião é contra”, me deixa
enojada. – “Então não era a primeira vez que aquele homem fazia algo parecido”,
questionou Diego mentalmente, enquanto os quatro entravam no prédio.
***
Do outro lado da cidade,
Zulmira gritava para que Paulo saísse do banho e fosse se vestir logo, pois
precisavam ir a um lugar. A voz da mulher estava carregada de raiva e isso não
passou despercebido pelo menino, que apesar de saber que hoje era o grande dia,
o dia em que voltaria a morar com Diego e Marcelo, não conseguia evitar sentir
medo daquela mulher assustadora.
Sob protestos de Zulmira
para que deixasse a pequena mochila que tinha trazido, em casa, Paulo fingiu
não entender as ordens e carregou a bolsa consigo até o banco de trás do carro.
Não queria deixar nada para trás naquela casa horrorosa. O trajeto até o lugar
foi silencioso, como sempre. Ele já estava se acostumando com aquele silencio
ruim, o que não significava que gostava de ficar quieto.
Quando finalmente
chegaram, logo que entraram no prédio, Paulo avistou Diego, Marcelo e Mayara,
juntos de Rosário, em pé num canto do saguão e fez menção de correr para eles,
mas foi impedido pelos dedos ossudos da mulher, que seguraram seu pulso com
força, mas não o suficiente para deixar uma marca, como no outro dia.
– Onde você pensa que vai,
garoto? – a voz cacarejante perguntou, ao mesmo tempo em que o puxava para
longe das pessoas que ele amava e conhecia.
– Boa tarde, irmã
Zulmira! – a voz oleosa de Eugênio, o conselheiro tutelar, soou as suas costas
e enquanto a mulher se virava para cumprimentá-lo, Paulo lutava para se livrar
do aperto daquela mão de esqueleto em seu pulso, sem sucesso.
Foram então chamados para
dentro da sala onde aconteceria a sessão e por alguns segundos os olhares de
Diego e Paulo se encontraram.
Após os ritos padrões
iniciais; Rosário apresentou à juíza a documentação da guarda de Paulo, o qual
a mulher leu com atenção e ao terminar disse: “eu me lembro deste caso”. Em seguida, foi chamado Eugênio, para
informar o motivo de o menino ter sido tomado do irmão. O homem mostrou uma
série de fotografias que não diziam nada, com exceção de que Paulo duas vezes
no período que estava sob a guarda do irmão, esperou um pouco mais pela
cuidadora na porta da escola.
– Sr. Eugênio, esta não é
a primeira reclamação que chega até mim sobre seu comportamento tendencioso
como conselheiro tutelar, mas, sem dúvida é a que tem menos provas ao seu
favor. – declarou a juíza, enquanto o homenzinho se encolhia e balbuciava uma
resposta ininteligível.
– Mas meritíssima, o
menino não está sendo bem cuidado naquela casa com aqueles dois... – o homem
tentou dizer, sendo interrompido pela magistrada que fez um gesto com a mão. Em
seguida, ela convidou Paulo para ir até uma saleta anexa ao espaço, acompanhada
de Rosário, para conversarem. O menino ficou assustado, mas acabou aceitando,
qualquer coisa seria melhor do que ter de voltar com aquela mulher de dedos
ossudos e que só o tratava mal.
Sentado numa cadeira em
frente à juíza, Paulo balançava as pernas de forma descontraída, apesar de
estar olhando para um ponto fixo no chão. Rosário estava em pé próximo a porta,
mas dava a entender que permaneceria em silencio.
– Paulo, você está
gostando de morar com a sua avó? – ele ergueu o rosto para encarar mulher e
ficou em silencio por alguns segundos, por medo de dar a resposta errada.
– ...Não. – declarou por
fim, em um gesto de desespero. Começou então a contar tudo o que vinha
acontecendo com ele desde que foi para a casa daquela mulher. Dormir no sofá,
comida ruim, ser arrastado par a igreja, ficar sozinho e trancado dentro de
casa e não ter permissão sequer para desenhar e a cereja do bolo, o beliscão
que ela tinha lhe dado há dois dias. Ele ergueu a manga da camiseta e exibiu a
mancha arroxeada que se destacava em sua pele macia de criança, cor de
chocolate.
– E quando você morava
com o seu irmão? Como era? – a resposta foi bem diferente. Ele contou sobre as
brincadeiras, os passeios, a comida feita só pra ele, o quarto, a festa de
aniversário, as tardes passadas com Mayara, o dia em que ficou doente, “Era dia das mães e eu estava muito triste e
o Diego cuidou de mim”. E o mais importante...
– Eles nunca me bateram,
nem me machucaram. – a juíza concordou com um gesto de cabeça e então os três
retornaram a sala principal, onde, após ser informado que o que Eugênio havia
feito era ilegal e que ele seria temporariamente afastado do seu cargo por
isso, a magistrada reiterou que a guarda era por direito de Diego e que Zulmira
não poderia se aproximar do garoto, a menos que ele quisesse vê-la.
– Mas isso é impossível,
eu sou a avó paterna dele! – gritou a mulher se levantando indignada, ao que
ouviu em resposta da juíza.
– Sim, a senhora é avó
paterna dele, mas não é a guardiã legal, designada pela mãe do menino em
testamento. – ao ouvir
isso, Paulo saiu correndo do lado de Zulmira e pulou em Diego, que o abraçou e
carregou no colo, beijando-o na testa e no topo da cabeça.
– Mas, meritíssima, não é
justo, e a propriedade que era do meu filho? A casa? Vai ficar no nome desse
menino? Eu ajudei meu filho a construir aquela casa, eu tenho direitos naquele
imóvel! – finalmente a máscara tinha caído e Zulmira exibia enfim o real motivo
de ter tentado arrancar Paulo do irmão. Ela queria a casa.
– O imóvel é herança do garoto
e dele por direito e só poderá ser comercializado quando Paulo atingir 21 anos.
– Zulmira estava indignada, todo aquele trabalho por nada. Pelo menos não
precisaria mais aguentar aquele garoto sujo na sua casa.
– A senhora mentiu para
mim, disse que ele estava sendo mal tratado! – inquiriu Eugênio enquanto saia
do prédio, fulo da vida por ter sido afastado do cargo de conselheiro tutelar.
– Ah claro, e você é
muito ingênuo e acreditou, não é? Ora vamos, quando eu falei quem estava com a
guarda do menino, só faltou você ir lá pessoalmente arrancá-lo da casa. O que
de fato, eu concordaria, mas não, eu não estava pensando no “bem estar” do
moleque. – Zulmira era um vulcão em erupção de pura raiva e estava despejando-a
sobre o conselheiro idiota.
Enquanto isso no saguão
de entrada, Rosário, acompanhada da Juíza, que se chamava Maria Alice,
observava a felicidade de Paulo ao reencontrar as pessoas que eram importantes
para ele.
***
Marcelo carregou Paulo
nos ombros até chegarem ao carro e então, o colocou sentado no banco de trás,
ao lado de Mayara, a quem o menino abraçou com carinho por um longo tempo. O
pesadelo tinha acabado.
Deixaram a moça em casa,
mas não sem antes descerem e tomarem café com bolo que Lola tinha preparado
especialmente para comemorar. Até Joana, que ainda estava se recuperando,
desceu para comer com eles e as duas encheram Paulo de mimos e agrados.
Voltando para casa, o
menino cochilou no carro. O balanço do veiculo o deixava sonolento, mas o fator
crucial foi o estresse e a agitação pela qual ele tinha passado aquele dia. Em
certo momento teve um pesadelo em que ainda estava na casa de Zulmira e que ela
tinha conseguido “a guarda” dele.
Acordou assustado, apenas
para constatar que estava em sua cama, na casa de Diego e Marcelo, com o abajur
do Homem-Aranha aceso e a porta do quarto com uma fresta aberta.
Ouviu sons vindos da
sala-cozinha e levantou, caminhando descalço e em silencio, para tentar escutar
a conversa. Seu irmão e Marcelo estavam sentados a mesa da cozinha, tomando
café e Paulo ouviu Diego dizer em um tom cansado de voz.
– Ainda bem que tudo isso
acabou. Eu tava ficando desesperado de não ter ele aqui em casa. Mas você viu
como ele perdeu peso esses dias que ficou longe? Acho que aquela mulher nem
dava comida pra ele... Monstro. Agora eu vejo de onde meu padrasto puxou a
ruindade. – a ultima frase chateou um pouco Paulo, pois apesar de ser certeira,
era sobre seu pai que estavam falando, mas, ele estava feliz demais de estar de
volta para se chatear com algo como aquilo.
– Amanhã eu vou ligar na
escola e informar que ela não pode mais buscar o Paulo, vai que aquela mulher
resolve aprontar alguma coisa, eu não vou arriscar. – Marcelo apenas concordava
com a cabeça, pois sabia que o marido estava ansioso e que a melhor forma de
lidar com isso era deixá-lo falar sem interromper.
– Oi? – Paulo entrou no espaço em que a cozinha e a
sala se dividiam e foi recepcionado pelos dois, com Marcelo o pegando no colo e
erguendo-o no ar.
– Oi rapaz, dormiu bem? –
respondeu que sim, mas que agora estava com fome. Foi colocado numa das
cadeiras enquanto via os dois prepararem algo para ele comer. Suspirando, o
menino disse.
– É bom voltar pra casa.
– o comentário não passou despercebido e após trocarem um olhar entre si, Diego
respondeu que “Era bom ter ele em casa de
novo também”.
Após o jantar, pois tinha
acordado tarde, os três assistiram filmes infantis na tevê e quando o sono
começou a bater de novo, Marcelo colocou Paulo na cama e tanto ele quanto Diego
lhe deram um beijo de boa noite na testa. O garoto adormeceu em poucos minutos.
Um pouco mais tarde,
quando estavam se preparando para dormir, Diego comentou sobre seu medo de que
Zulmira tentasse tomar Paulo dele, de novo. Ao que Marcelo o acalmou, dizendo
que era impossível. “Você ouviu o que a
juíza disse”.
– Amanhã a gente vai
levar ele na Liberdade, passear e comer pastel. Tenta focar nisso agora, por
favor. Todo esse pesadelo finalmente acabou e não vai ter parte 2. – Marcelo
deu um beijo suave nos lábios de Diego e deitou na cama, cansado.
Diego fez o mesmo,
abraçando o marido e tentando adormecer, mas os pensamentos pessimistas em sua
cabeça continuavam proliferando, por mais que se esforçasse para acabar com
eles.
Por fim, com esforço,
conseguiu pensar, antes de adormecer: “Bom, amanhã será outro dia.”
Continua...
Notas finais:
Olá pessoal,
Bom, finalmente o Paulo
voltou para onde deveria estar que era com o Diego e o Marcelo.
Muitas informações
jurídicas/de tutela/guarda foram geradas sem qualquer embasamento técnico, já
que é quase impossível achar esse tipo de informação na internet e eu não tinha
ninguém da área para perguntar. Então, se você é da área de Direito e quiser
informar algum complemento, eu agradeço.
E eles vão na Liberdade!
Um dos meus bairros favoritos de SP <3
Daqui pra frente a
história volta ao seu ritmo cotidiano, pois ao que tudo indica, esse plot twist
da avó do mal não agradou muita gente – pelo menos, eu deduzo que não. Não sei
dizer quantos capítulos esta história ainda vai ter, mas adianto que ela vai
terminar no ano corrente da história, 2019, pois eu não tenho estômago pra
falar de pandemia – já que nós ainda estamos vivendo ela.
Enfim, obrigada pelo
apoio, não esqueça de favoritar e deixar um comentário, são muito importantes!
Até a próxima,
Perséfone Tenou.
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