Naquela manhã, enquanto levava Paulo para a escola, Diego conversou com o menino e frisou o quão importante era que ele contasse caso alguma coisa de ruim acontecesse no futuro durante o tempo que ele estivesse na escola.
– E isso não é nada
errado, viu? Você pode confiar no Marcelo e eu. Nós vamos estar sempre aqui pra
te proteger. – pelo retrovisor, via o menino concordar com gestos de cabeça com
uma expressão animada.
Parou o carro em frente à
escola e ajudou Paulo a pular para o banco da frente, onde o garoto lhe deu um
abraço apertado e se despediu. Diego viu uma menina da altura de Paulo se
aproximar e dar tapinhas gentis no ombro do garoto. Devia ser Agatha.
E enquanto entrava na
sala de aula, Paulo sorriu, pois pela primeira vez desde que se entendia por
gente, estava se sentindo confiante, sabendo que o irmão e Marcelo iam dar
apoio para ele, já que até então seu pai sempre dizia para ele engolir o choro
e “enfrentar feito homem” e que “homem nunca pede ajuda”.
***
As mães de Mayara não
estavam muito bem de saúde, Joana pegou outro resfriado e Lola reclamava de um
peso no peito e apesar da insistência da filha, nenhuma das duas aceitava ir ao
médico. Por isso, Mayara se ofereceu para cuidar da loja de sabonetes durante o
período da manhã, enquanto Paulo estava na escola.
Elas protestaram, dizendo
que a moça tinha de se focar em encontrar um emprego na sua área de formação,
mas May sabia que isso não seria fácil. O país estava com cada vez menos vagas
disponíveis, menos ainda se contar as das áreas sociais, como era o caso dela,
formada em pedagogia.
Na verdade, o Brasil
estava indo de mal a pior com aquele crápula no poder e a cada novo absurdo que
saia na tevê e nos jornais, ela sentia que ia ter uma crise de ansiedade forte
o bastante para fazê-la ser internada. Mas, sempre repetia para si mesma de que
não podia se permitir isso, ela tinha suas mães para cuidar, além de todas as pessoas
que ficariam preocupadas com ela. No entanto, estava ficando difícil se manter
firme vivendo naquele momento da história do país.
Sua atenção foi atraída
pelo sininho em cima da porta, que tocava toda vez que alguém entrava na loja.
Respirou fundo e colocou seu melhor sorriso de vendas no rosto. O dia estava
começando.
***
Ele se remexeu na cama e
olhou o rádio-relógio na mesa de cabeceira. Marcava 7h15 da manhã. Ao esticar o
braço para o lado, descobriu que Francisco não estava deitado ao seu lado e
quando ouviu sons de tilintar na cozinha, se sentiu tranquilo, ao saber que o
namorado ainda estava em casa.
Ao olhar-se no espelho do
banheiro, sentiu um embrulho no estômago. Estava com olheiras feias e olhos
inchados e vermelhos. Tinha chorado até dormir no dia anterior e ao ver o
resultado, sentiu um misto de raiva e vergonha.
Rumou para a pequena
cozinha do apartamento, encontrando Francisco já vestido de terno e gravata,
preparando alguma coisa no fogão. Joaquim continuava usando apenas uma camiseta
grande e a roupa íntima.
– Bom dia. – murmurou meio deslocado enquanto
se aproximava do namorado. O viu se virar e sorrir, o bigode escuro e farto
elevando-se com os lábios, enquanto ele segurava um prato com alguma coisa.
– Oi, tá melhor? – concordou com um meneio de cabeça, enquanto sentava-se
à mesa e via Francisco depositar um prato com omelete a sua frente. Aquele era
um dos seus pratos favoritos para o café da manhã e o outro sabia disso.
– Desculpa por ontem... –
murmurou enquanto cutucava a comida com o garfo, evitando olhar Francisco nos
olhos. Ouviu a cadeira a sua frente ser puxada e viu o namorado depositar a
caneca de café na mesa.
– Não tem do que se
desculpar. Você chorou ontem e daí? Não é motivo pra se envergonhar. – sentiu a
mão morna e firme de Francisco segurar a sua e então, ergueu o rosto para
encará-lo. Ele sorria.
– Vai ficar tudo bem. Por
hoje, então descansa um pouco. Liga pra Helen e pede àquela recomendação que eu
te falei, mas fique tranquilo. – sentiu o polegar dele acariciar as costas da
sua mão num carinho gentil.
– Agora come, porque como
dizia minha falecida mãe, “Saco vazio não para em pé”. E também, eu quero saber
se acertei a receita. – Francisco disse para em seguida tomar um gole de café e
ouvir Joaquim responder rindo “Então eu
sou sua cobaia é?”.
– Você é meu porquinho da
índia favorito. – ao fim do café, Francisco beijou-o nos lábios com ardor,
deixando o loiro sem fôlego e ansioso para que o namorado voltasse logo.
– Qualquer coisa, você me
manda um whats, tá bom? – concordou com um balançar da cabeça e um sorriso.
Às vezes tinha aquelas
crises idiotas de ciúmes, em que enfiava na cabeça que o namorado ainda estava
a fim do ex, mas quando aconteciam momentos como aquele do café da manhã,
Joaquim via o quão paranoico conseguia ser de vez em quando.
Francisco foi o primeiro
namorado que o respeitava como pessoa e que demonstrava querer apenas o seu
bem.
Lavou a louça do café e
sentou-se em frente da tevê esperando dar dez horas e poder telefonar para a
Helen.
***
Naquela manhã na
imobiliária, Diego levou para sua mesa uma foto que tirou com Marcelo e Paulo
há alguns dias. Eles tinham ido ver uma exposição decorativa num dos shoppings
da cidade. Dinossauros. Paulo parecia estar perdendo o interesse pelo
Homem-aranha e começando a se interessar por aquelas criaturas pré-históricas
gigantescas. Claro que ele ainda gostava do super-herói, mas os dinossauros
estavam começando a ocupar um espaço importante na mente do menino.
Colocou o porta-retratos
no seu cubículo e sorriu para a foto. Estavam os três na frente de uma réplica
enorme de um Tiranossauro Rex com a bocarra aberta e um grito silencioso.
Ia fazer três meses que o
menino estava com eles e sua opinião sobre o garoto tinha mudado por completo.
Diego agora não imaginava seus dias sem Paulo fazendo parte deles.
– Ei Diego, você
conseguiu alugar aquele imóvel do outro dia? – ergueu o rosto encontrando Raul
apoiado na divisória dos cubículos. Ele era um rapaz negro, alto e esguio com
um sorriso simpático. Trabalhavam na mesma imobiliária há quase oito anos.
– Que nada cara, a moça
desistiu no ultimo instante, disse que ia pensar um pouco e isso já faz uma
semana. Tá ficando difícil ganhar algum ultimamente. – viu Raul concordar com
um gesto animado de cabeça, o que o fez se lembrar de Paulo.
– E essa foto nova ai?
Quem e o menino? Vocês adotaram? – não escondia dentro do trabalho que era gay.
Tinha decidido isso quando entrou no lugar, três antes de conhecer Marcelo. E
quando se casou, contou aos colegas mais próximos, mas mais uma vez, não tentou
esconder. Usava a aliança no dedo anelar da mão esquerda e colocava fotos deles
juntos no seu cubículo.
– Ah é, você tava de
férias quando eu contei. Esse aqui é meu irmãozinho. Filho da minha mãe com o
segundo marido. Ela morreu faz uns dois meses e daí deixou por escrito que a
guarda dele deveria ficar comigo. – ouviu as tão costumeiras palavras de
pêsames, as quais ele aceitou por educação, pois ainda não tinha conseguido
entender como lidar com o luto. Quer dizer, doía saber que ela tinha morrido,
ainda era sua mãe. Mas algo egoísta e cruel lá no fundo da sua mente estava
feliz que Beatriz tivesse desaparecido da terra.
– E então, como está o
cotidiano com uma criança? – A esposa de Raul estava grávida, ia nascer dali
alguns meses e o rapaz parecia um misto de animação e pavor, como todo bom pai
de primeira viagem.
– É bem animado, sabe?
Digo, às vezes fica um pouco complicado, mas estamos nos virando bem. Uma amiga
nossa está cuidando dele durante a semana depois que ele volta da escola. –
conversaram mais um pouco, Raul contou que sua esposa, Luiza, estava doida para
botar o bebê para fora, “Ela não consegue
fazer mais nada, eu morro de dó dela e já decidimos que esse bacuri vai ser
filho único”.
Mais um dia de trabalho,
mas agora Diego tinha dois motivos para se dedicar.
***
Na escola, Paulo
comentava com Agatha e Luís sobre a exposição dos dinossauros que foi ver com o
irmão e Marcelo há algumas semanas. Os outros dois o ouviam maravilhados, até que
a professora perguntou o que ele estava conversando.
Ficou meio envergonhado
por ter sido pego no pulo, mas respirou fundo e respondeu que falavam sobre
dinossauros. Marta então o encorajou a vir até a frente da sala e contar o que
ele tinha aprendido aos colegas.
– Bom, os dinossauros
viveram aqui no nosso planeta há muitos e muitos e muitos anos atrás. Eles eram
uns bichos muito grandes, pareciam lagartixas gigantes e com dentes enormes.
Mas nem todos comiam carne, alguns deles eram herbirovos. – Marta segurou um
risinho, para não desencorajar o menino e viu os olhinhos dos alunos todos
fixos no coleguinha, exceto por um.
– Eles nasciam de ovos,
mas não eram pássaros e eles faziam um barulho muito alto, que nem um leão, só
que mais forte. – o sinal soou informando que era hora do intervalo, mas as
crianças ficaram até Paulo terminar sua explicação.
Marta estava fascinada
com a memória do menino para todas aquelas informações. Ela viu então as
crianças saírem, Paulo acompanhado de Agatha e Luís.
– Profê Marta! – olhou
para baixo e encontrou Emanuel, o menino que tinha pedido para trocar de mesa
no dia anterior.
– Sim? – ela via uma
expressão de raiva e duvida no rosto do menino. Já tinha visto aquilo antes e
sabia que teria problemas no futuro com os pais de Emanuel, mas, sabia que era
parte de ser professora.
– Ele estava mentindo,
né? Não existiu esse tipo de bicho. Minha mãe sempre diz que Deus criou tudo e
que ele nunca criaria essas coisas grandes e feias. – ai, como sair daquela
saia justa?
– Emanuel, meu bem, há
pesquisas que provam que essas criaturas existiram há muito tempo atrás, antes
até do ser humano surgir no planeta. Talvez, seja por isso que sua mãe não fale
dos dinossauros. – ela já estava vendo a mãe do menino ameaçá-la com um forcado
na próxima reunião de pais e mestres, mas não podia deixá-lo sem uma resposta.
– Hmm, entendi. – pareceu
ser o bastante para acalmar o menino e ele saiu para o intervalo junto dos
outros. Marta ficou sentada sobre a ponta da mesa pensando em como as coisas
estavam ficando difíceis para os que acreditavam na ciência e na educação.
***
Já era hora do almoço e
Marcelo se despediu de Claudia na recepção, após ter trocado algumas mensagens
com Francisco e escolhido um restaurante num shopping da Paulista para se
encontrarem. Tinha apenas mais dois pacientes naquele dia, uma senhora com
travamento de coluna e um jovem que fazia tratamento para ansiedade.
Estava feliz de rever
Francisco e poder se reaproximar do amigo depois de anos sem se falarem.
Chegou no shopping mais
cedo do que o esperado e resolveu conferir os lançamentos do cinema, para ver
se tinha algo em que pudessem levar Paulo no final de semana. E era isso, de
dois meses para cá tudo o que ele pensava, incluía o menino e não era algo
ruim. Na verdade, ficava feliz de pensar em atividades que Paulo poderia gostar
ou que o fariam sorrir.
Estava pensando se ligava
para a mãe e contava sobre o mais novo membro da família. Ela não fez escândalo
quando ele saiu do armário, não tentou deserdá-lo ou convertê-lo em algo que
não era. Gostava da mãe, Rita, mas pelo fato da mulher morar em Santos, quase não
se viam e com o excesso de pacientes que vinha tendo, não conseguia ligar pra
ela.
Rita gostava de Diego,
ela dizia que ele era como um filho. Então pensou que talvez a mãe gostasse de
saber que agora ela tinha um “neto”.
Pensou em conversar com Diego antes, mas pretendia ligar para a mãe até o final
de semana.
Retornou para a praça de
alimentação, onde viu Francisco se destacar com seu terno escuro e aquele
bigode a lá Tom Seleck. Aproximou-se do amigo que sorriu ao vê-lo e convidou-o
a sentar.
– E ai Marcelo, como
estão as coisas? – conversa vai, conversa vem, Francisco enfim trouxe o assunto
principal.
– O Joaquim foi demitido
ontem. – ouviu toda a explicação de como a dentista para qual o outro
trabalhava resolveu ir estudar no exterior e anunciou que fecharia o
consultório.
– Agora ele tá meio
desesperado, sabe? Mas, eu não te chamei aqui pra pedir emprego pra ele, que
fique bem claro. – Marcelo sorriu sem graça e pensou que não havia problema se
fosse, mas ele não precisava de assistentes.
– Ele anda muito
solitário e eu pensei que talvez você e o Diego quisessem sair com a gente um
dia desses. Ir num barzinho, tomar um chope, falar bobagem e rir. Eu gostaria
que ele tivesse alguns amigos na cidade, sabe? Alguém com quem ele pudesse
conversar no futuro. – Marcelo respondeu que era uma ótima ideia, mas, fez uma
anotação mental de que precisava confirmar com Diego.
– Vamos combinar isso e
quem sabe esse sábado a gente marca alguma coisa. – respondeu Marcelo,
levantando-se em seguida para retirar seu pedido que piscava em números
vermelhos no marcados do quiosque.
Tiveram um almoço
agradável, conversaram sobre de tudo um pouco. Marcelo ficou sabendo meio por
cima, sobre o passado de Joaquim e então entendeu a insegurança que o rapaz
devia estar passando. Prometeu entrar em contato com amigos odontologistas e
ver o que conseguiria.
– Sabe Francisco, é bom
poder conversar com você de novo. – declarou enquanto levava uma garfada de
comida até a boca.
– O sentimento é mútuo,
amigo. – o almoço foi agradável e eles se despediram combinando de saírem
juntos no final de semana.
Continua...
Nota da autora:
Ultimo capítulo de 2020
(mas calma, que semana que vem vai ter outro, eu não vou entrar de férias nem
nada).
Aqui eu tentei cobrir o
máximo de focos narrativos possíveis, espero que vocês tenham gostado. Como
devem ter notado, alguns personagens têm problemas de admitir que queiram
chorar ou estão se sentindo fracos, isso vem da criação abusiva e machista a
qual eles foram expostos.
Também coloquei alguns
elementos de atualidade, já que essa história se passa em 2019. Estou pensando
se abordo a pandemia quando virar 2020 (porque essa história vai ser longa,
gente!), mas tenho tentado encaixar informações e locais sem ficar algo truncado
– ou pelo menos espero estar conseguindo.
Obrigada a todo mundo que
tá acompanhando e que leu até aqui e adianto que semana que vem vai ter lemon
do Francisco com o Joaquim! (Yey).
Feliz 2021 gente e força, saúde e esperança pra todos
nós!
Perséfone Tenou
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