LONDRES,
1888
A pena arranhava o papel, fazendo os
traços que formavam as palavras aparecerem. Inclinou-se mais sobre a
escrivaninha, lutando para tentar enxergar, pois a claridade era parca e
tornava seu oficio algo impossível de ser completado.
Releu
o trecho em voz alta, em busca de possíveis erros de grafia ou coerência.
–
“Escrevo na parede as minhas rimas,
De
painéis a carvão adorno as ruas...
Como
as aves do céu e as flores puras,
Abro
meu peito ao sol e durmo à lua. ”(*)
Como não os encontrou, deu se por
satisfeito e largou a folha sobre a mesa, virando-se então para o seu armário,
no canto do quarto, de onde tirou uma longa capa negra com revestimento
vermelho e uma cartola alta e também escura. Vestiu as peças e olhou-se no
pequeno espelho de parede.
Um rosto jovem e bem apessoado lhe
sorriu de volta, olhos castanho-escuros que brilhavam de excitação. Estava
ansioso pela noite que teria e todo seu ser esperava por aquilo. Girou nos
calcanhares e saiu porta a fora, encontrando a rua deserta e parcialmente
iluminada pelos poucos lampiões, que estavam espalhados por toda a extensão.
A
capa negra que vestia esvoaçava para trás, impulsionada pelo vento que vinha em
sua direção. Na cabeça, a cartola alta, que lhe dava um ar mais orgulhoso e
confiante, completava a vestimenta.
Parou em frente a uma casa grande e majestosa,
de portas largas feitas com a madeira mais forte já encontrada e bateu nestas
com uma das mãos fechada em punho. Logo em seguida uma fresta se abriu e um
rosto atento e de feições asiáticas surgiu*, era uma garota.
–
Preciso entrar. – disse ele enquanto a fenda na porta se tornava maior a ponto
de deixá-lo passar. Adentrou no hall da casa, e observou o salão principal,
onde havia alguns divãs, onde pessoas estavam deitadas, fumando algo em longos
cachimbos.
Desceu as escadas que levavam ao
local e aproximou-se de um dos divãs, onde um jovem estava aparentemente
inconsciente. Acocorou-se ao lado deste e sussurrou em seu ouvido.
–
Eu estou aqui. – o rapaz deitado ali sorriu lentamente, sem abrir os olhos e
tragou mais do conteúdo que havia no cachimbo longo o qual ele segurava
molemente com uma das mãos. Ele então abriu as pálpebras, exibindo duas
brilhantes esmeraldas verde-claras que se fixaram no outro, que estava em pé ao
seu lado.
–
Olá Sophier. – ele estendeu uma das mãos para segurar a do amigo e a apertou
com pouca força, apenas para demonstrar que estava desperto. Seus cabelos
negros estavam espalhados pela almofada do divã, dando a ele um ar mais etéreo
que o normal.
–
Como vai, Casper? – Sophier estendeu a outra mão ao rapaz deitado e o ajudou a
levantar. Este se sentou na beira do divã e respirou fundo, tentando se
levantar, sem grande sucesso.
Acabou tombando em direção ao chão,
sendo amparado pelo amigo, que ria da sua desgraça, para logo em seguida
ajudá-lo a se colocar em pé.
O corpo vacilou para frente e para
trás por alguns segundos, até se afirmar e Casper então levantou a cabeça para
encarar o amigo que ainda lhe sorria com os lábios fechados.
–
Vamos embora que a noite será longa. – disse finalmente, após se aprumar em pé
enquanto abraçava o pescoço do outro e deixava-se ser puxado para fora da casa
de ópio, onde ele passara diversas noites desde que começara a notar seus
desejos pelo companheiro.
Tinha um amor secreto por Sophier,
mas por ter medo da rejeição, não se declarava. Com isso, constantemente “caia
nos braços do dragão”*, como uma forma de fuga da realidade que o assolava.
E agora ali, com o braço em volta do
pescoço do mesmo, Casper sentia seu peito se apertar e doer incomodado com as
sensações que tal aproximação lhe causava. Podia inspirar o aroma do perfume
que ele usara e a forma como seus cabelos castanhos roçavam em seu rosto
conforme este se movia.
Entraram em uma taverna e Sophier
mal se sentou já foi pedindo por algumas garrafas de vinho. Quando questionado
como iria pagar pela bebida, ele foi direto, tirou uma bolsinha de dentro do
paletó e a arremessou para o taverneiro, que abriu e jogou o conteúdo sobre o
balcão, contando as moedas com total satisfação nos olhinhos de porco.
Em poucos minutos seis garrafas de
vinho foram colocadas sobre a mesa e o jovem poeta logo tratou de bebê-las.
Casper, que ainda estava um pouco zonzo por causa da droga, recusou o copo que
lhe era oferecido, para indignação de Sophier que já bebia sua quarta taça.
–
Você precisa beber um pouco, para tirar o dragão da cabeça. – disse o jovem
empunhando uma taça de vinho em uma das mãos e a oferecendo insistentemente ao
amigo, que recusava com meneios de cabeça.
–
Não, se eu beber posso acabar desmaiando e você terá de me carregar até em
casa. Quer isso? Não aproveitar a noite que lhe está sendo oferecida? – Casper
perguntou com um meio sorriso no rosto, como um desafio a Sophier.
Com um olhar vencido, o poeta
desistiu de oferecer vinho ao músico, mas continuou bebendo e ao ver que a
porta da taverna abria-se, trazendo a luz parca da rua para o seu interior,
sorriu e fez um gesto para que os recém-chegados se aproximassem. Eram dois
jovens, os que adentravam no lugar, um loiro e outro de cabelos castanho-claro,
assim como os seus. Também trajavam capas e cartolas distintas e levavam nas
mãos bengalas com enfeites de prata.
–
Sentem-se amigos e bebam conosco até o sol nascer novamente. – ofereceu
Sophier, que já estava na sexta taça de vinho, e sua voz começava a ficar
engrolada e incompreensível. Os dois recém-chegados riram da oferta e puxando
cadeiras, sentaram-se à mesa, servindo-se da bebida.
–
O que nos contam de novidades? Anrie? Archibalde? – inquiriu o jovem poeta
bêbado para os dois, debruçando-se sobre a mesa em busca da garrafa que estava
nas mãos do loiro.
–
Não temos muito que falar, a noite está tranqüila, exceto por uma surpresa que
Anrie teve a poucos minutos em uma casa de ópio. – dizia o rapaz de cabelos
castanho-claro, apontando para o loiro, que ria de forma abafada enquanto
ocultava a boca com uma das mãos.
–
Conte-nos, queremos saber de tudo, não é mesmo Casper? – este meneou a cabeça
concordando, quando na realidade tudo o que desejava era estar no pequeno
apartamento que dividia com Sophier e dormir na cama cujo colchão cheio de
calombos costumava lhe causar muitas dores nas costas.
–
Eu estava nessa casa de ópio e havia este lindo rapaz deitado no divã ao lado
do meu, ele tragava do cachimbo com tanto cuidado que chamou minha atenção. Eu
me levantei para olhá-lo melhor e ele notou minha curiosidade, pois se virou em
minha direção, fitando-me com aqueles olhos negros e profundos... – Anrie
parecia perdido em pensamentos enquanto narrava os fatos acontecidos aos três,
tinha o rosto angular apoiado numa das mãos e fitava o teto da taverna com um
ar sonhador.
–
...E então, eu me inclinei para falar com ele, foi quando de repente, tive meu
pescoço abraçado e nossos lábios colados em um beijo ardente. Pensei que estava
sendo correspondido e ao partir o contato, tentei dizer alguma coisa, mas ele
foi mais rápido e... – Archibalde se adiantou, segurando o braço de Anrie
impedindo-o de falar, com um grande sorriso diabólico nos lábios bem desenhados
ele revelou a grande surpresa.
–
Ele se chamava Christabelle. Era uma mulher em roupas de homem*. – caiu então
em uma cruel gargalhada que foi cortada por um tapa dado em sua cabeça pela mão
de Anrie, que indignado com o fato, virou a taça de vinho em um único gole.
Casper encarava o amigo com
surpresa, não imaginava que Anrie compartilhava este tipo de sentimento que ele
também tinha (mas no seu caso, era dirigido à Sophier). Pensou se talvez um dia poderia se declarar para o poeta sem ter
aquele medo preso dentro de seu peito, a ameaça de que alguma coisa poderia dar
errado se falasse como realmente se sentia em relação ao outro.
–
E então acabou? Você não a trouxe consigo? – Sophier perguntou indignado,
lançando para Anrie um olhar de pura reprovação, o qual fez um gesto com a mão,
como se estivesse espantando algum inseto incômodo, dando a entender que não se
daria ao trabalho de responder tal pergunta estúpida.
A conversa rendeu até muito tarde, quando
o taverneiro pigarreando para chamar atenção informou que precisaria fechar o
lugar, pois há muito já havia passado de sua hora habitual. Sophier,
completamente bêbado, ainda pagou para levar algumas garrafas de bebida consigo
e sendo amparado por Casper e Archibalde, saiu da taverna, jurando que voltaria
na noite seguinte e nas próximas que viessem.
***
Ao entrarem no pequeno quarto que
Casper e Sophier dividiam, Anrie e Archibalde deixaram o ébrio aos cuidados do
outro, que com muito esforço conseguiu colocá-lo deitado na estreita cama de
solteiro que dividiam, por falta de capital. Mas não porque não podiam pagar,
pelo contrário, já que os pais de ambos enviavam grandes remessas de dinheiro
mensalmente para os estudos e hospedagem dos mesmos, mas eles acabavam gastando
tudo na boêmia e não sobrava muito com o que viver, ou no caso deles,
sobreviver.
Observou o rosto adormecido do amigo, um
semblante tranqüilo e pacifico que não condizia em nada com sua personalidade
quando desperto. Acariciou a testa do mesmo com as pontas dos dedos, retirando
alguns fios de cabelo que ali estavam e notando como as pálpebras dele se
contraiam perante seu toque. Seu coração se apertou ao pensar em roubar-lhe um
beijo, chegou até mesmo a ensaiar um movimento em direção aos lábios
entreabertos do outro, mas recuou quando o mesmo se mexeu na cama, dando sinais
de estar parcialmente acordado.
Levantou-se da beira da cama e
passou a tirar as vestes elaboradas que trajava. O paletó, a camisa, então a
faixa que ficava na cintura, as calças e finalmente os sapatos. Deixou tudo
arrumado sobre uma cadeira que ficava no canto do quarto e vestiu o pijama, uma
longa camisola branca, rumando de volta para a cama estreita, onde Sophier
dormia esparramado, ocupando boa parte do espaço diminuto. Empurrou-o para o
lado com certa bruteza, mais do que gostaria e por isso se arrependeu, apesar
do poeta sequer ter reclamado, tão ferrado no sono ele estava.
Deitou-se
então, fitando as costas largas do amigo e ouvindo-o ressonar baixinho,
completamente entregue aos braços de Morfeu*. Estendeu a mão lentamente e tocou
aquela área que estava voltada para si, acariciando-o por sobre as vestes e
notando que ele suspirava em resposta ao toque.
Mordeu o lábio inferior, incerto do
que fazer a seguir e por medo de se adiantar demais acabou achando melhor
deixar-se levar pelo sono. Adormeceu com a mão nas costas de Sophier, que
continuava indiferente a sua presença.
***
Acordou no dia seguinte com o sol
invadindo uma das frestas da janela de madeira apodrecida, acertando um de seus
olhos com tanta precisão quanto um punhal. Casper sentou-se na cama e olhou
para o lado, encontrando o amigo que ainda dormia. E impelido por um sentimento
o qual não conseguia conter, inclinou-se sobre o outro e beijou-lhe na testa,
sentindo seu coração acelerar perante o gesto que fizera. Era o primeiro ato
mais ousado que se arriscava a fazer.
Virou-se então para o armário
pequeno que dividiam, pegando uma muda de roupas para vestir. Lançou um olhar
de soslaio em direção a Sophier, que ainda dormia tranquilamente, e passou
então a se arrumar, pois aquele seria um longo dia de batalha para vender seu
material de trabalho. Era compositor de peças para piano, e desde que compusera
sua ultima obra, estava com dificuldades para vendê-la.
Tudo o levava a crer que o mundo já
não estava mais tão receptivo com as músicas feitas para piano. Mesmo assim ele
tentaria a sorte, apresentando sua peça no teatro da cidade, onde haveria um
possível comprador. O Duque de Canterville.
Sabia que ele era um homem difícil
de ser persuadido, mas tinha algumas cartas na manga para fazer com que o mesmo
se interessasse por sua música. Lançou um ultimo olhar para Sophier, que
permanecia dormindo, totalmente indiferente a movimentação que estava
acontecendo no quarto, e saiu porta a fora, pensando em quando teria coragem de
se declarar para o amigo.
***
Parado
em frente ao grande teatro com a pasta de composições embaixo de um dos braços,
Casper respirou fundo antes de começar a caminhar em direção a entrada do
lugar. Subiu os degraus de dois em dois, pensando nas palavras que usaria para
abordar o Duque e como sugeriria uma apresentação de seu trabalho.
Ao
adentrar no amplo salão do teatro, viu um homem bem apessoado, na casa dos 30
anos, em pé, de costas para ele, conversando com outras pessoas que riam
comedidas de alguma piada contada pelo mesmo. Aquele era o conde que ele teria
de persuadir. Subiu as escadas lentamente, encarando as costas largas do homem
com uma determinação que deixaria as pessoas surpresas, mas ao parar atrás
dele, há poucos centímetros de distancia, estendeu a mão para chamá-lo, mas ao
mesmo tempo deixou que a mesma caísse molemente para o lado, havia perdido a
coragem.
Assim
como não tinha coragem de se declarar para Sophier, também tinha receio de
abordar o Duque e fazê-lo se irritar consigo. Deu meia volta e preparava-se
para ir embora, quando ouviu uma voz feminina dizer:
–
Acho que aquele jovem queria falar com você, Lion. – estancou no lugar, fitando
por sobre o ombro para a moça que havia dito aquilo e no mesmo instante seus
olhos encontraram-se com os do Duque, que sorriu de forma polida e desceu
alguns degraus em sua direção.
–
É verdade isso meu rapaz? Gostaria de falar comigo? – piscou algumas vezes para
em seguida retirar a pasta com as partituras debaixo do braço e entregá-las ao
Duque, que o encarava com um misto de diversão e dúvida no olhar.
Observou o homem folhear seu
trabalho com pouco interesse e sentiu seu peito apertar pela segunda vez
naquele dia, mas agora de desespero, pois precisava de alguém que quisesse suas
composições para que pudesse ter algum dinheiro no bolso. Por fim, após minutos
que lhe pareceram horas, o Duque levantou seus olhos azuis em sua direção e
sorrido disse:
–
Parece promissor, mas acredito que eu iria gostar mais se pudesse ouvi-las
sendo executadas. Temos um piano aqui no teatro, se não se incomodar de
usá-lo... – Casper viu ali uma grande oportunidade e a agarrou com força.
Sorriu de forma educada e concordou, disse que sim, adoraria utilizar o piano
para tocar suas peças.
Foi então conduzido por dentro do
teatro até o local onde estava o instrumento. Sentou-se a banqueta e ajeitou a
partitura a sua frente, sentindo os olhares curiosos do Duque e dos outros que
o acompanhavam a suas costas, parecendo querer perfurá-lo. Estralou os dedos e
começou a executar uma peça complexa que exigia muito de suas mãos, mas ao
mesmo tempo, se tornava uma melodia maravilhosa de se ouvir. Há havia composto
enquanto pensava em Sophier, na forma como o amava e deseja e no quanto não
conseguia expor seus sentimentos para ele.
Com os últimos toques nas teclas do
piano, encerrou a melodia, sendo ovacionado por uma salva de palmas a suas
costas, para sua total surpresa. Olhou por sobre o ombro, encontrando as jovens
moças enxugando os olhos com lenços mimosos e os rapazes disfarçando que limpavam
algo nos olhos. Aquela peça era algo angustiante e comovente, que mexia com o
espectador de uma forma única e especial.
–
Meus parabéns meu jovem, esta peça é sem dúvida uma das melhores que já ouvi
até hoje. Quero que você venha executá-la no baile que darei daqui três semanas
na mansão Canterville, ouviu? – disse o Duque enquanto colocava uma das mãos
sobre o ombro de Casper, que sorria fascinado com a proposta.
Saiu do teatro com um considerável
adiantamento da apresentação no bolso do casaco, o qual planejava gastar em uma
comemoração noturna com Sophier, Archibalde e Anrie. Pois sua vida boemia se
resumia a isso, festas, bebidas, casas de ópio, garrafas de absinto e noites
insones regadas à leitura das poesias absurdas de seu amado amigo.
Continua...
Notas
do capítulo:
*
“Escrevo na parede as minhas rimas, De painéis a carvão adorno as ruas...”:
Este trecho de poema não me pertence, e sim a Alvarez de Azevedo, faz parte da
poesia “vagabundo”, do livro “A lira dos vinte anos”
* “um rosto atento e de feições
asiáticas surgiu”:
as casas de ópio, que existiam nesta época, eram todas controladas por
chineses. Por isso os olhos puxados.
*
“caia nos braços do dragão”: era uma expressão usada quando se referia a alguém
que utilizava de drogas, no caso, o ópio.
* “Ele se chamava Christabelle. Era uma
mulher em roupas de homem”: na época do romantismo, a mulher que se vestia com
roupas de homem era uma figura bastante comum e até apreciada pelos poetas.
* “Completamente entregue aos braços de
Morfeu”: ou nos braços do sono, Morfeu é a figura mítica grega do sono.
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