Do outro lado da cidade, naquele mesmo dia, Joaquim estava sendo entrevistado por Joana, a qual achou o rapaz simpático e comunicativo e após confirmar que ele tinha habilidades de fazer embrulhos e troco, resolveu contratá-lo para trabalhar na loja de sabonetes, já que Lola continuava tendo de fazer repouso e ela, tendo de ficar de olho para ver se a esposa não ia tentar fugir.
– Então meu rapaz, você
começa amanhã. Aqui está a cópia das chaves da loja, ela abre as 10h00 e fecha
as 19h00 de segunda a sexta-feira. E nos sábados abre das 10h00 as 14h00.
Fechamos aos domingos e feriados. – falou
Joana enquanto afofava os cabelos Black Power prateados com cuidado.
– Muito obrigado mais uma
vez pela oportunidade, dona Joana. Prometo que não vou decepcioná-la. – Joaquim
apertou a mão delicada da senhora, que sorriu simpática enquanto observava o
rapaz sair da loja, indo falar com sua filha.
Mayara estava ao telefone
e exibia uma expressão incomodada. Ao ver o loiro se aproximar, esboçou um
sorriso nervoso e falou mais um pouco com a outra pessoa na linha e então
desligou. Ele queria contar que tinha conseguido o emprego, mas a expressão no
rosto da moça o intrigou.
– O que houve? – a ouviu
contar sobre a situação na casa de Diego e Marcelo no dia anterior, como a avó
paterna do menino apareceu lá e levou o garoto embora sob ameaças.
– O Marcelo disse que já
conversou com a assistente social do caso do Paulo e ao que tudo indica, aquela
mulher não vai poder ficar com ele em definitivo, mas, né... Burocracia. – ela
suspirou cansada e apoiou-se na beirada da vitrine da loja de sabonetes, encarando
o trânsito por alguns segundos, até se dar conta de que Joaquim tinha saído de
dentro da loja.
– Mas e ai, como foi a
entrevista? – o rapaz sorriu e contou que tinha conseguido a vaga, mas
sentia-se meio chateado de falar sobre aquela conquista, após saber o que tinha
acontecido com Diego e Marcelo no dia anterior. Sabia o quanto eles gostavam do
menino e só podia imaginar o que estavam passando agora.
***
Estava no banco de trás
do carro daquela mulher que dizia ser sua avó, mas da qual ele não se lembrava.
Ela o assustava com uma expressão sempre irritada e seca, as mãos de dedos
finos e esqueléticos causavam um arrepio ruim nele quando seguravam seu pulso. Paulo
queria perguntar onde eles estavam indo, mas ficou com medo do que a mulher
poderia responder.
Olhando pela janela, não
reconheceu nada, com certeza estava longe da casa de Diego e isso o apavorava.
Ele estava se segurando na promessa que o irmão fez de que ia buscá-lo em
breve, mas havia aquela vozinha lá no fundo que dizia algo que falava coisas
horríveis. Que Diego nunca iria vir buscá-lo e que ninguém o queria por perto,
por isso ele estava com aquela mulher.
O carro parou com um
solavanco em frente a um prédio enorme e encardido. Zulmira desceu e ao abrir a
porta de trás, o puxou pelo pulso com violência, ordenando que andasse logo.
Ele entrou pelas portas enormes de madeira e foi atingido no nariz pelo cheiro
forte de produtos de limpeza.
– Agora sente ali e fique
quieto que eu tenho coisas para fazer. – ouviu a mulher dizer enquanto apontava
para uma fileira de cadeiras de plástico alinhadas próximas a parede. Ele a viu
aproximar-se de um grupo de outras mulheres, todas com o mesmo comportamento
estranho e seco e as ouviu se cumprimentarem “Olá, irmã!” e então, começou um
falatório do qual Paulo não quis prestar atenção.
Sentando no chão, tirou o
caderno e os lápis de cor da mochila e começou a desenhar. O chão estava frio,
mas era mais confortável que a cadeira de plástico. De vez em quando ele erguia
os olhos para ver onde a mulher estava. Ele se recusava a chamá-la de avó.
Para Paulo, suas avós
eram Joana, Lola e Rita. Não aquela mulher estranha que o tratava como se ele
fosse um saco de lixo que podia ser atirado para lá e para cá. Sentia saudades
de Diego e de Marcelo e de Mayara. Queria voltar para casa.
As horas se arrastaram e
quando ouviu seu nome ser dito com irritação, estava cochilando no chão em cima
do caderno e com os lápis de cor espalhados ao seu redor. Levou um susto ao ser
puxado com brusquidão para cima e chacoalhado.
– Eu disse pra você se
comportar, menino! Agora junte tudo isso e vamos embora. – ele lançou um olhar
pedido socorro silencioso para as outras mulheres, mas nenhuma delas viu – ou
talvez elas tivessem fingido não ver – pois não lhe deram atenção e chateado, o
menino juntou os lápis que tinham rolado pelo salão e o caderno, enfiando tudo
dentro da mochila com a cabeça baixa, segurando o choro e fungando.
Quando chegaram em casa,
Zulmira o colocou para dentro e disse que ia ao mercado, trancando a porta ao
sair. “Não mexa em nada e não apronte
nada, viu garoto?”, foram as ultimas palavras que ela disse antes de sair
com o carro de novo.
Começou a chover e
trovejar forte.
***
Tinha chegado da
imobiliária e sentiu o silencio da casa esmagá-lo. Hoje não tinha recepção do
menino, nem Mayara para contar como eles passaram o dia, não tinha desenhos
para serem mostrados ou histórias das aventuras de Paulo, Agatha e Luís. A casa
estava vazia e escura e em um gesto impulsivo, Diego foi até o quarto do garoto
e acendeu a luz. A cama estava arrumada, as coisas na escrivaninha exatamente
como ele deixara. Era como se o garoto só tivesse ido passear e já voltasse.
Estava mergulhado em
pensamentos quando ouviu o motor do carro de Marcelo entrando na garagem, mas
não conseguiu sair da porta do quarto do irmãozinho. Só imaginava como aquela
mulher o estaria tratando, será que ele estava comendo e dormindo bem? Com
certeza não, mas precisava se prender a esse pensamento.
– Di? Tá em casa? – respondeu
com um sussurro, mas em poucos segundos Marcelo estava entrando no pequeno
corredor que dava para os quartos e ao vê-lo parado ali em pé na frente do
cômodo, sentiu que a noticia que tinha para dar poderia animar o marido.
– Eu tenho boas notícias.
Conversei com a Rosário de novo hoje mais tarde e ela me disse que conseguiu
uma audiência com a juíza que aprovou a documentação de guarda do Paulo em
janeiro e ela também me disse que aquela mulher não tem qualquer direito sob
ele, mesmo sendo a avó paterna. Sua mãe deixou a guarda do Paulo pra você e
ninguém pode tirar isso. – abraçou o outro pelos ombros, sentindo ele depositar
a cabeça em seu ombro e suspirar cansado.
– Quando será essa audiência?
– Diego sentia um misto de emoções, felicidade por saber que aquilo não seria
permanente, mas receio por imaginar que Paulo já poderia estar desacreditado da
sua promessa.
– Sexta-feira, eu sei,
uma semana, mas foi o único dia que a Rosário conseguiu. Pelo que eu entendi,
na verdade essa audiência vai ser mais pra dar uma bronca no tal conselheiro
tutelar e naquela mulher. Só precisamos levar o testamento e a documentação e
ele volta pra cá sexta-feira mesmo. – foi então que o celular de Diego começou
a tocar e ele pescou o aparelho no bolso da calça.
Era um numero
desconhecido, mas local. Resolveu atender.
– Âlô? – a ligação tinha
um bocado de chiado no começo, mas quando repetiu a pergunta, a linha ficou
limpa e pode ouvir a voz chorosa do menino do outro lado.
– Diego, vem me buscar,
eu não gosto daqui. – olhou para Marcelo e disse, “É o Paulo”, para em seguida
por a ligação no viva-voz.
– Eu queria muito buscar
você, mas ainda não posso, mas esta semana mesmo você volta pra casa, prometo,
né Marcelo? – o outro respondeu que sim e que eles iam passear quando ele
voltasse.
– Tá chovendo e eu tou
com medo. Não tem nada pra eu fazer, tá escuro e eu tou sozinho aqui... – Diego
lançou um olhar indignado para o aparelho de telefone e então, outro repleto de
pena para o marido.
– Como assim você tá
sozinho? Cadê a... A Zulmira? – não conseguia chamar a mulher de “sua avó” e
pela resposta de Paulo, o sentimento parecia ser mútuo.
– Ela saiu, disse que ia
no mercado. Ela foi me buscar na escola e daí me levou num lugar grande,
parecia um salão de festa, mas meio estranho e ficou lá conversando com um
monte de mulher e eu fiquei no chão desenhando, daí eu acabei dormindo e ela me
deu um safanão pra eu acordar... E então eu fiquei aqui sozinho, começou a
chover e eu lembrei que tinha seu numero escrito dentro do meu caderno... – a
voz chorosa do menino do outro lado da linha era de cortar o coração e se Diego
pudesse, atravessava a cidade como um foguete e buscava o garoto de lá.
– Você já comeu? – tentou
mudar de assunto pra ver se acalmava o garoto. Ouviu-o responder que não,
porque não estava com fome. Ficou na linha com Paulo até ouvi-lo dizer que o
carro da mulher tinha parado na frente da casa.
– Paulo, escuta uma
coisa, a gente vai se ver sexta-feira, tá bom? E daí você volta pra casa e
ninguém nunca mais vai te tirar daqui, eu prometo. Mas se você ficar sozinho ai
de novo essa semana, liga pra mim, tá bom? Aguenta firme só mais uns dias, logo
tudo isso vai acabar, eu prometo. – ouviu o menino sussurrar “tá bom, eu acredito em você” e então a
linha ficou muda.
– Como que aquela mulher
pode deixar ele sozinho? – foram as primeiras palavras indignadas ditas por
Diego enquanto rumava até a pequena cozinha para pegar uma xícara de café.
– A Rosário disse quando
vão avisar essa mulher sobre a audiência? – perguntou amargurado enquanto
enchia a xícara uma segunda vez e mordia as pelinhas soltas do lábio inferior
com violência.
– Amanhã. Ela disse que tanto ela quanto o
conselheiro tutelar vão ser intimados a comparecer na vara da família e vão
receber as intimações amanhã. Pelo menos foi o que o escritório da juíza
informou pra ela. Diego, é melhor você parar de fazer isso ou vai acabar... –
viu o rapaz bater a xícara ainda cheia de café contra a bancada com raiva e
responder com um timbre de voz amargo.
– Eu sei o que vai
acontecer, eu vou fazer uma ferida! Grande merda! Será que você não pode me
deixar em paz? – desistindo de tomar o resto do conteúdo da xícara, Diego a
abandonou na bancada e foi até o banheiro, onde trancou a porta e ligou o
chuveiro.
Precisava chorar.
***
Quando Zulmira entrou em
casa, carregada de sacolas, correu os olhos pelo cômodo procurando qualquer
coisa fora do lugar, mas tudo estava exatamente como ela tinha deixado.
Inclusive o garoto, que estava deitado no sofá, cochilando.
Ela o olhou por alguns
segundos e pensou, porque não podia ter puxado o pai ao invés da mãe, aquela
mulherzinha repulsiva? Mas pelo menos quando estava dormindo não dava trabalho.
Preparou sopa com pedaços
de pão e após servir os dois pratos, foi acordar Paulo. Cutucou o menino de
forma brusca e informou que o jantar estava na mesa e que se ele não viesse
logo, a comida ia esfriar. Ela viu o garoto sentar-se a mesa e pegar a colher
com a mão esquerda, o que fez com que Zulmira franzisse o cenho e torcesse os
lábios, tornado seu rosto rabugento, ainda mais assustador.
– Crianças educadas comem
com a mão direita. – ela disse, vendo o garoto se esforçar para segurar o
talher com a outra mão. Ele não tinha culpa de ser canhoto, nasceu assim. Mas
na concepção da mulher, aquilo era errado.
Levou o dobro do tempo
para terminar a sopa, já que a colher ficava escapando da sua mão. Quando
finalmente terminou, ela disse para que fosse tomar banho, trocar de roupa e
voltasse para dormir. Paulo obedeceu, pois tinha medo dela.
Ele caiu no sono pensando
quando poderia voltar para casa.
***
Quando entrou no quarto,
Diego já estava dormindo ou pelo menos era o que parecia. Marcelo se trocou e
deitou ao lado do marido, mas de costas para ele. Compreendia o comportamento de Diego, sabia das explosões
de ansiedade e irritabilidade que ele as vezes tinha e exatamente por isso,
decidiu que daquela vez seria melhor não tentar arrumar as coisas.
Estava quase dormindo
quando sentiu a mão morna do outro em seu ombro e então, cobriu-a com a sua
própria mão, apertando-a com carinho. Sentiu Diego encostar a testa em suas
costas e o ouviu suspirar cansado.
Virou-se para encarar o
marido e então o beijou na testa, enquanto sentia os braços longos dele
envolverem sua cintura e ele esconder o rosto em seu peito. Não falaram nada,
pois palavras não eram necessárias naquele momento.
Apesar de saber que Paulo
voltaria dali alguns dias para casa, Diego ainda estava apavorado com a simples
ameaça de perder a guarda do irmãozinho. O garoto que ele não queria em casa e
do qual agora não desejava se separar.
Queria dizer tanta coisa
para Marcelo, agradecer pelo seu apoio, pelo seu amor, por não abandoná-lo nos
momentos difíceis, mas as palavras pareciam não querer sair, e ele estava muito
cansado pra forçá-las.
No fim acabou adormecendo
envolvido naquele abraço cálido.
Continua...
Nota da autora:
Bom, primeiro quero me
desculpar pela demora. Semana passada e retrasada eu sofri meu inferno pessoal
na Terra, com a inflamação de um dente do siso que quase me deixou louca de
dor. Mas acredite, até pesadelo com leitores cobrando atualização eu tive
durante essas duas semanas. (Se você está lendo essa história muito tempo
depois, ignore esse trecho acima).
Então, claro que a
Zulmira não tinha direitos sob a guarda do menino, mas, o Diego não sabia
disso, como muitos brasileiros que podem ser enganados por documentação e
ameaças de prisão, sem saber seus direitos.
Não sei se eu falei, mas
essa história da avó do Paulo é levemente inspirada pelo caso daquela menina
que estava sendo iniciada na umbanda e que a avó inventou mentiras para tomá-la
da mãe. Só que claro, aqui as mentiras foram bem mais “leves” e a coisa vai
durar menos tempo.
O Diego tem ansiedade
crônica e se recusa a tratar com psicólogos, por uma série de motivos, então
quando ele tem essas explosões às vezes, a coisa toda foge do controle e sobra
até pro Marcelo.
Também vimos o Joaquim
conseguir um emprego na lojinha de sabonetes das mães da Mayara (e teremos mais
sobre isso nos próximos capítulos).
Esta história é slice of
life, ou seja, cotidiano. Daí não esperem muito mais plot twists, além desse da
avó. Talvez teremos mais algumas coisas interessantes, mas nada tão drástico.
Espero que estejam
gostando de ler, tanto quanto eu estou gostando de escrever. Leiam minhas
outras originais, se quiserem e, por favor, deixem um comentário, eu tenho
tantas histórias que ainda quero escrever/trazer pra cá, mas sem o feedback dos
leitores eu fico meio desanimada.
Enfim é isso, obrigada
por ler até aqui e até o próximo capítulo!
Perséfone Tenou
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