Estavam brincando
de montar as peças de lego em silencio já fazia quase 10 minutos. Paulo se
sentia incomodado com o silencio da menina, mas achou melhor não cutucá-la para
falar, até que...
— Sabe... A
namorada do meu pai vai ter um bebê... — a menina falou sem desviar os olhos
das peças de plástico que estava conectando. Paulo permaneceu em silencio.
— E... Da ultima
vez que eu passei o dia com ele, ela me puxou de lado e disse que por isso, eu
não seria mais... Importante pro meu pai... — a voz da menina tremeu e ela
largou as pecinhas com que estava brincando.
— E tem mais! —
ela disse com a voz embargada de choro e enquanto finalmente olhava para ele,
exibindo um rosto repleto de tristeza.
— O meu pai vai
trabalhar em outra cidade... E eles vão se mudar daqui... — ela limpou o nariz
que tinha começado a escorrer e então se sentou encolhida, abraçando os
joelhos.
— Minha mãe diz
que ele vai continuar vindo me ver, mas eu sei que não... Ele já não tem vindo
sempre, morando aqui, então quando mudar, vai vir menos ainda... — Paulo viu a
menina erguer o rosto coberto de lágrimas e fixar o olhar nele e sentiu-se
triste por ela.
— Desculpa eu ter
te empurrado aquele dia e não ter falando com você, mas é que, isso me deixou
muito triste e com... Com raiva! Eu ouvi a minha mãe falando com a minha avó,
ela não sabia que eu tava escutando, e ela disse um monte de coisas, que meu
pai só vem me buscar porque “faz parte do
acordo” e por causa da “pensão
ridícula”... — Paulo engatinhou até onde a menina estava encolhida e ainda
chorando e passou o braço pelos ombros dela. Não disse nada, pois não sabia o
que dizer, mas ficou ali com ela, até ouvir Agatha suspirar exausta e em
seguida, sentir ela encostar a cabeça no seu ombro.
— Minha mãe nunca
disse nada disso pra mim, ela diz que meu pai me ama e que ele quer me ver, mas
eu escuto sabe? E daí eu comecei a pensar que era tudo mentira... — O menino olhou para o rosto da amiga, como o
lábio inferior tremia enquanto lágrimas escorriam pelas bochechas macias.
— Eu não queria
ter feito aquilo com você aquele dia... Me desculpa! — Paulo a abraçou e sentiu
a menina continuar chorando contra seu peito e em resposta, fez um afago leve
nas costas dela. Ele tinha perdido ambos os pais com um intervalo mínimo de
tempo e no seu caso, foi para sempre, mas, entendia o sentimento de Agatha. Por
piores que eles fossem, eles ainda eram seus pais e eram importantes.
Enquanto isso, na
cozinha, Vanessa contava aos três adultos como as coisas realmente aconteceram
e o quanto ela estava possessa com Silas.
— ...E aquele
infeliz do Silas nem teve coragem de contar pessoalmente pra Agatha que ia se
mudar pra outra cidade. Como sempre, a bomba sobrou pra mim. E eu fiquei
sabendo, depois que contei as “ótimas
notícias” para a minha filha, que aquelazinha que ta com ele agora, falou
que está grávida e que “ele não vai mais
precisar de você, porque vai ficar comigo e o meu bebê” palavras daquela...
— Vanessa espiou o corredor antes de dizer as ultimas duas palavras. — piranha
oportunista.
Diego serviu outro
refil de café para a moça que parecia uma bomba prestes a explodir, tamanha sua
irritação. Mayara segurou a mão de Vanessa em um gesto silencioso de apoio e a
outra sorriu.
— E daí, naquele
domingo eu tinha me comprometido a levar as crianças para brincar no shopping,
mas a Agatha ainda não tinha digerido bem a noticia, acho que nunca vai... E
então, ela empurrou o Paulo... — Vanessa suspirou cansada, no rosto dela
podia-se ver o estrago que o divorcio estava fazendo, não por causa dela, mas
sim pelas consequências em Agatha.
— Eu podia ter
contado pra ele, mas achei melhor a Agatha falar pessoalmente, porque acredito
que ela tem de aprender a resolver os próprios problemas... Será que fui muito
cruel? — como em uma resposta para a duvida de Vanessa, eles ouviram risos
animados vindos do quarto no fim do corredor e então os quatro adultos trocaram
olhares aliviados e Marcelo observou que “parece
que você tomou a decisão certa”.
***
Miriam estava
estudando como sempre, quando recebeu uma mensagem no grupo que Mayara havia
criado para elas, Vanessa, Diego e Marcelo, informando que Agatha e Paulo
tinham feito as pazes e isso deixou a moça aliviada e a fez tirar uma pausa dos
livros para ir contar as novidades ao irmãozinho.
Desde aquele
domingo, Luís andava entristecido e a situação na casa deles só piorava tudo. A
avó continuava doente e acamada e seus pais se revezavam para tomar conta dela,
deixando o cuidado do menino para a irmã mais velha. Miriam fazia o que podia
para alegrar o menino, mas nos últimos dias estava complicado.
Ela bateu na porta
do quarto, que tinha uma plaquinha de madeira com um Pikachu desenhado onde se
lia “quarto do Luís” e ao espiar lá
dentro, encontrou o menino jogando Mario no seu antigo super nintendo.
— Oi mocinho. Como
ta o jogo? — perguntou enquanto se sentava na beira da cama de solteiro do
irmão e o via pausar o vídeo-game.
— Só tou jogando
pra ver se fico com sono... — ela puxou o menino com gentileza pelo braço e o
colocou sentado entre suas pernas, de costas para ela e o abraçou com carinho
enquanto sussurrava que tinha boas notícias.
Quando contou
sobre as outras duas crianças, viu o irmão virar o rosto para ela e exibir
aquele sorriso lindo que Miriam não via há dias.
Luís era uma
criança muito compreensiva para a idade, ele entendia que não podia convidar os
amigos para vir a sua casa, porque a avó estava doente e por isso, a casa não
estava tão limpa quanto a mãe gostaria e que também pelo problema de saúde da
idosa, eles não podiam fazer muitos gastos.
Ele se contentava com
pouco e conseguia ser feliz com o que tinha.
— Quer jogar
alguma outra coisa? Eu acho que posso tirar mais uns minutos de folga dos
estudos. — sugeriu Miriam, vendo o irmãozinho saltar da cama para o console e
trocar o cartucho, animado.
***
Estavam assistindo
algo num streaming na tevê do quarto e Francisco acabou cochilando, fazendo com
que Joaquim que não conseguia pegar no sono, levantasse e fosse até a sala. Ele
então se deitou no sofá e colocou fones de ouvido para escutar alguma musica
numa tentativa de vencer a insônia que estava sendo causada pelos pensamentos
sobre as coisas que já tinham acontecido naquele ano e de que nem tudo havia
sido bom e era isso que o estava preocupando. O pavor do que as futuras
mudanças poderiam trazer para sua vida.
Queria ser menos
ansioso e só “aproveitar o momento”,
mas não conseguia, pois tinha a sensação de que no assim que baixasse guarda
por completo, algo ruim iria acontecer. Apesar de que, naqueles cinco anos que
estava com Francisco, sua ansiedade nervosa tinha dado uma boa diminuída – mas ainda
estava lá.
Também esperava
fazer algumas amizades no curso técnico, pois com exceção de Marcelo e Diego,
que eram amigos de Francisco, ele não tinha mais ninguém. As poucas pessoas que
conhecia mudaram de cidade ou até foram pra fora do país.
Pensar nisso o
deixava meio deprimido, apesar de saber que não era exatamente culpa sua, mas
sim de todo o isolamento social que passou desde criança e depois quando estava
com o ex que sempre dava um jeito de afastá-lo de qualquer amizade, com a
desculpa de que “ele não precisava de
mais ninguém”.
Era nessas horas
da madrugada, quando Joaquim perdia o sono e ia pra sala, que esses pensamentos
brotavam. Lembranças de situações de violência que passou e pensamentos que o
repreendiam por não ter visto os sinais e a culpa que colocava em si por ter
demorado tanto tempo para sair daquele ciclo abusivo.
Estava começando a
esfriar e por isso ele fez um chá e então se sentou na borda da janela, olhando
o movimento de carros lá embaixo e pensando que, apesar de amar muito o
namorado, às vezes até gostava daqueles momentos em que ficava sozinho – só não
gostava dos pensamentos intrusivos que ficavam aparecendo.
Ainda assim,
sentia algum orgulho de estar conseguindo recuperar o controle da sua vida,
mesmo que estivesse sendo a conquista muito lenta e arrastada.
***
Já havia se
passado duas semanas desde que as aulas das crianças voltaram e era véspera do
Dia dos pais* e as crianças faziam lembrancinhas na aula. Agatha, no entanto,
não estava chateada, pois ao contar para a mãe, a ouviu dizer.
— Querida, faça
para mim. Eu vou gostar. — e com esse incentivo, a menina agora recortava o
molde do que se tornaria um bloquinho de notas em forma de gravata.
Paulo pediu dois
kits para a professora, pois queria fazer um para Diego e outro para Marcelo e
Luís disse que seu pai estava animado para ganhar o dele. Todas as crianças
pareciam animadas com seus artesanatos, com exceção de Emmanuel, que apenas
colava um pedaço de papel colorido em cima do outro da forma mais desanimada
possível. Ao voltar das férias, o gesso tinha sido retirado, mas o menino não
parecia feliz.
— Emmanuel, o que
você está fazendo? — a Profê Martha perguntou, ao que o menino, que no começo
do ano era sempre mal educado e agressivo apenas respondeu com um movimento de
ombros, como se dissesse “tanto faz”.
— Você não quer
entregar uma lembrança bem bonita para o seu pai no Domingo? — Martha
perguntou, apesar de saber a resposta. Os funcionários da escola conversavam e
não foram poucas as vezes que ela ouviu as histórias sobre o pai do garoto. E
claro, também tinha aquele vergão avermelhado na nuca do menino.
— Não. — o menino
respondeu enquanto fungava, lançado em seguida olhares ameaçadores para o resto
da turma que na mesma hora desviou o olhar.
— Tudo bem. Só
tente terminar de montar então. — ela tinha tentado conversar com a direção da
escola, para alertar o conselho tutelar, mas nada foi feito e isso frustrava
muito a moça. Ver seus alunos apresentando marcas e hematomas e não poder fazer
nada era desesperador.
Desde que eles
voltaram das férias, Emmanuel não pegou no pé de Paulo nenhuma vez e isso não
passou despercebido pelo menino, que também notou como o outro garoto parecia
menos violento e mais triste a cada dia. Se pelo menos tivesse a certeza de que
não levaria um soco ou uma rasteira, ele até tentaria se aproximar do outro
menino e convidá-lo para brincar com eles no recreio. Mas a verdade era que
Paulo ainda não tinha perdoado o outro pelas coisas que fez e disse,
especialmente para Agatha.
No intervalo,
enquanto eles estavam sentados em um dos bancos de pedra no pátio, Paulo
comentou com os amigos o que eles achavam do “novo Emmanuel” ao que Agatha
suspirou e revirou os olhos, para em seguida dar uma mordida na maçã que trouxe
na lancheira, enquanto que Luís fez uma careta que parecia dizer “não sei, cara”.
— Eu acho que ele
apanha do pai em casa. Ouvi a dona Neusa conversando com uma das tias da
cozinha, quando ela me viu, mudou de assunto, mas parece que aquele gesso que
ele tava usando antes das férias... — Luís contou aos outros dois que ouviram
com atenção, mas sem surpresa.
Continua...
Nota da autora:
Então, o motivo da
agressividade da Agatha foi revelado e convenhamos que a menina tivesse todo o
direito de sentir raiva do pai. Não é incomum, quando um casal se divorcia e
então começam novos relacionamentos, que os novos parceiros às vezes são cruéis
com os filhos do casamento anterior. – mas já adianto aqui que nada mais
extremo vai acontecer com a menina, não tenho planos de recriar casos criminais
nesta história. Também quis apresentar a postura da Vanessa, de fazer a filha
resolver os próprios problemas.
E finalizamos o
capítulo com um Emmanuel amuado e triste, mas os garotos ainda não engoliram
tudo o que ele fez no semestre anterior para tentar se aproximar.
Faz quatro anos
que eu estou escrevendo essa história e confesso que não foram poucas as vezes
que eu pensei em abandonar tudo, porque eu acho que a coisa toda está ruim e
fraca, mas, no fim eu acabei continuando e já estamos no capítulo 71!
Eu sei que muita
gente que começou a ler, ao ver que o enredo não ia ter grandes reviravoltas ou
vilões cartunescos, deve ter abandonado a história, mas “slice of life”
(cotidiano) são assim, situações corriqueiras que se desenvolvem sem grandes
plot twists.
Se você leu até
aqui, por favor, deixe um comentário. Eu quero saber o que você está achando da
história, quero ter a sua opinião.
Obrigada e até o
próximo capítulo.
Perséfone Tenou
Nenhum comentário:
Postar um comentário