Já estavam quase no meio do mês de Janeiro e na segunda semana de Fevereiro ele e Diego comemorariam um ano de casados. Convidou alguns amigos próximos dos dois, incluindo Joana, Lola e Mayara e naquele momento estava no supermercado fazendo as compras do mês e pegando alguns produtos que tinham data de validade longa, para o jantar de aniversário, com Paulo sentado dentro do carrinho, enquanto Diego ainda estava na imobiliária.
Como Marcelo tinha o dia
de folga, resolveu adiantar as coisas e no dia anterior disse a Mayara que ela
teria um dia livre e pode notar pela expressão da moça que ela tinha gostado da
noticia. Com certeza tinha planos de como preencher o tempo.
Segurava a lista de
compras numa das mãos contra a alça do carrinho e procurava por um item nas
prateleiras, quando sentiu o toque delicado da pequena mão do garoto nas costas
da sua.
– Oi? – foi brindado por aqueles grandes olhos
castanhos e cativantes e sorriu. Não tinha como não gostar do menino. Viu ele
então escrever algo na lousa que vinha carregando pra todo lado desde que Diego
havia lhe dado há alguns dias.
“Cafe”
Estava escrito sem acento,
o que era compreensível, pois ele ainda não tinha aprendido sobre pontuação e
acentos, mas as letras estavam bem claras, redondas e firmes. Paulo vinha
treinando todos os dias no caderno que Mayara tinha lhe trazido e era um aluno
muito esforçado. Fazia pelo menos quatro páginas de caligrafia, que ele chamava
mentalmente de “escrita redondinha”
por dia.
Não bebia café, claro,
mas lembrava que Diego havia comentado com Marcelo na sua frente que o deles
tinha acabado e pelas cores das embalagens, viu que tinham passado do corredor.
– Verdade! Café, eu quase
ia esquecendo. Obrigado pela ajuda, rapazinho. – sentiu a mão grande e firme de
Marcelo bagunças seu cabelo em um agrado rápido e sorriu. Gostava daquele
contato e gostou ainda mais de ouvir aquele adulto agradecê-lo.
Voltaram até o corredor
em questão e ele viu Marcelo pegar o pacote com a xícara saindo fumaça
estampada na embalagem. Pegaram os demais itens da lista, que Marcelo leu em
voz alta para ele, perguntando no fim se não faltava mais nada, ao que
respondeu com um meneio de cabeça negativo.
– Certo, então vamos lá
passar no caixa e daí, voltamos pra casa, tá? – viu Marcelo fazer um positivo
com o polegar e respondeu imitando o gesto e sorrindo.
Na fila, Marcelo pensava
em como o menino era esperto e prestava atenção em tudo a sua volta, inclusive
no comentário descuidado de Diego sobre o café. Estava tão distraído que levou
um susto ao sentir uma mão forte bater em seu ombro.
Ao olhar para trás,
encontrou um homem alto e de porte grande, que exibia um vasto bigode e um
cabelo negro penteado num topete firme.
– Marcelo, não está me
reconhecendo? Francisco, da faculdade! – claro, eles eram colegas de turma, mas
se separaram quando resolveram cursas especializações diferentes. Um sorriso
nostálgico surgiu no seu rosto enquanto dava um abraço meio torto em Francisco.
– Pelo que eu tou vendo,
casou com o Di, né? E como ele tá? – comentou o recém chegado enquanto olhava
para o seu dedo anelar da mão esquerda onde a aliança reluzia. Respondeu que
sim e que Diego estava bem, a fila andou e ele se moveu alguns passos com o
carrinho. E então a atenção de Francisco foi atraída para Paulo, que o encarava
de forma assustada.
– Adotou? – ouviu o amigo
falar baixinho perto do seu ouvido e riu, o menino era a cara de Diego, mas ainda
assim o outro perguntou aquilo.
– Não exatamente, ele é o
irmãozinho do Diego, longa história, outro dia eu te conto. Vamos marcar de
sair, você e o Mauro... – nem terminou a frase e viu Francisco negar com um
movimento de cabeça.
– A gente terminou uns
meses depois de eu escolher a minha especialização. Sou quiroprático. – ficou
meio sem jeito ao saber que Mauro não estava mais com o amigo, mas né, casais
se separam e nem todo mundo tinha um relacionamento como o dele com Diego.
– Poxa que pena. – a fila
andou mais alguns passos, aquele dia o supermercado estava cheio e o calor do
começo do ano tornava tudo ainda mais torturante, podia sentir algumas gotas de
suor quente descendo por sua nuca, camiseta dentro.
– Deixa isso pra lá, eu tou de namorado novo.
Olha ele ali na sessão de congelados, aquele loirinho ali perto da geladeira. –
viu de imediato e percebeu que o rapaz era uma cópia quase idêntica de Mauro.
– O nome dele é Joaquim,
a gente tá junto já faz uns anos. Talvez eu peça ele em casamento, fazer uma
loucura como vocês dois. – sentiu um soco leve ser dado no seu braço e forçou
um sorriso. Algo dizia que Francisco ainda não tinha esquecido o ex.
Sentado dentro do
carrinho rodeado pelas compras, Paulo encarava aquele homem que falava com
Marcelo, totalmente apreensivo. Já tinha se acostumado com as pessoas da casa,
mas estranhos ainda era um assunto a parte. Ele tinha medo de gente que não
conhecia, como qualquer criança da sua idade.
Não conseguia ouvir a
conversa dos dois, pois o homem de bigode falava baixo, quase como se estivesse
contando algum segredo a Marcelo. Ele viu então o rapaz loiro para quem o outro
apontou se aproximando, ele também cumprimentou Marcelo e olhou rapidamente na
sua direção, esboçando um sorriso fraco.
– Senhor? – a voz da
caixa quebrou a conversa, obrigando os três a se afastarem. O homem de bigode
(Francisco) e o homem loiro que ele não sabia o nome se afastaram e Marcelo
empurrou o carrinho e começou a colocar as compras na esteira rolante.
Quando saiam do
supermercado, Marcelo lhe comprou uma casquinha, creme com chocolate e uma de
chocolate para si. Foram tomando o sorvete até chegarem ao carro e acabou antes
de entrarem. Ajudou a colocar as compras no banco de trás, ao seu lado e vestiu
o cinto de segurança.
Foi um trajeto tranquilo,
Marcelo falava com ele o tempo todo e olhava suas respostas no quadro branco
sempre que o sinal fechava. Quando enfim chegaram em casa, Paulo abraçou o
irmão que tinha acabado de chegar da imobiliária e estava sentado no sofá e
escreveu “tomar banho”, ele ainda não
sabia formar frases completas, mas pelo menos se sentiam feliz de conseguir se
comunicar.
Enquanto via o irmão
correr para o quarto e em seguida ouvir a porta do banheiro fechar, olhou para
o marido que colocava as compras no armário e na geladeira. Estava calor, como
sempre fazia em Janeiro e ele tinha acabado de retirar a gravata e abrir os primeiros
botões da camisa e mais uma vez agradeceu mentalmente por poderem pagar pelo ar
condicionado.
– Deu tudo certo? –
perguntou enquanto se levantava e começava a ajudar Marcelo a estocar as coisas
nos armários. Ouviu ele responder com “hmm-hum”
e em seguida dizer “adivinha quem eu
encontrei hoje no supermercado?” odiava esse tipo de brincadeira de “você não adivinha quem...”, então
simplesmente perguntou:
– Quem? – Marcelo, que
sabia o quanto o outro odiava quando ele fazia aquela pergunta e acabou fazendo-a
por impulso, contou que viu Francisco e toda a história sobre o antigo e o novo
namorado.
– Pela aparência do
atual, tá na cara que ele não esqueceu o Mauro, sabe? Mas claro, eu não falei
nada. Dei meu numero pra ele e disse pra me ligar, pra gente sair nós quatro um
dia desses beber um chope na Augusta. – enquanto colocava o ultimo pacote de
biscoito no armário, percebeu o silencio de Diego e pensou se fez o certo em
sugerir que o amigo ligasse no futuro.
– Fiz mal? – olhou para
trás e encontrou o marido segurando o pacote de café como se fosse uma coisa
preciosa e se preocupou com o olhar perdido dele.
– Não, é só que, se a
gente for sair, vamos precisar chamar a May de novo... Eu não quero que nenhum
vizinho idiota me denuncie pro conselho tutelar por “abandonar um menor sozinho” ou coisa do tipo. – Marcelo sentiu-se
aliviado, Diego estava receoso de deixar o menino sem supervisão em casa.
– Calma, o Francisco nem
ligou ainda e você já tá prevendo as possibilidades de coisas ruins que
poderiam acontecer. Você se apegou mesmo a ele, né? – viu Diego ficar sem jeito e
largar o pacote de café na bancada que dividia a cozinha e a sala, voltando a
se sentar no sofá.
– Claro que fiquei... Eu
sou responsável por ele. – disse emburrado, mas por baixo daquela frase dava
pra sentir que ele realmente gostava do irmãozinho.
Fechou a porta do armário
e sentou ao lado do marido no sofá, abraçando-o pelos ombros. Sentiu Diego se
retesar e em resposta beijou-o na curva do pescoço, pois ali era o ponto se ele
queria fazê-lo relaxar.
– Eu também gosto muito
dele. É um bom menino, muito comportado e sabe de uma coisa, ele presta atenção
em tudo à volta dele. – contou da história do café e ao ver a expressão de
surpresa no rosto de Diego, sorriu.
– Tá bom, eu vou admitir,
eu gosto dele, ele é realmente um menino incrível e muito esperto, é que,
sempre que eu penso no tempo antes de ele vir pra cá, de eu conhecê-lo, como eu
odiava a simples ideia da minha mãe ter tido uma criança com aquele... Homem. –
a ultima palavra saiu com um amargor quase palpável e Diego ia continuar, mas
ouviu a porta do banheiro abrir e achou melhor ficar quieto.
Em alguns minutos Paulo
estava entrando na sala, saindo do corredor, trajando outro dos pijamas de
verão que estavam na cômoda do seu quarto. Hoje era do Homem de Ferro, pois
todos do herói aracnídeo estavam lavando.
– Oi mocinho, já tomou
banho? Pendurou sua toalha lá no seu quarto pra secar? Certo, então vem aqui
ver tevê com a gente. – Diego então ajeitou o menino sentado entre eles e mudou
o canal até achar algo apropriado pra uma criança de sete, corrigiu-se
mentalmente, seis anos assistir.
Acabou parando num
episodio do Bob Esponja, onde ele e seus amigos da Fenda do Biquíni estavam
entretidos em alguma aventura divertida. Ao olhar para Paulo, viu como os olhos
do menino estavam fixos naquela esponja amarela (que lembrava muito a que eles
tinham na pia da cozinha) e de repente o menino soltou uma gargalhada gostosa
que preencheu o ar como pequenas bolhas de sabão.
Olhou para Marcelo por
cima da cabeça do garoto e sorriu cansado, parecia dizer “tá bem, eu me rendo. Eu gosto muito dele, acho até que o amo, mas quem
não gosta desse carinha?”
Assistiram desenhos por
horas e foi o final de noite mais agradável que tinham tido em tempos. E então,
por volta das oito e meia da noite, Diego sentiu o peso morno da cabeça de
Paulo em seu peito, o menino tinha adormecido. Carregou-o até o quarto e após
colocá-lo na cama e fazer o ritual de sempre que incluía o abajur e a porta
entreaberta, voltou para a sala, onde Marcelo continuava assistindo as
aventuras do fundo do mar e rindo como uma criança grande.
Encostou-se no batente do
fim do corredor com os braços cruzados, só observando o marido rir com as
trapalhadas que aquela estrela cor de rosa de shorts estava aprontando e pela
enésima vez se apaixonou por ele.
– Ele tá dormindo? –
ouviu Marcelo perguntar enquanto se aproximava e colocava a mão morna em seu
rosto, acariciando sua bochecha e em seguida sua nuca.
– Hmm-hum, como uma
pedra. Vocês se divertiram hoje no supermercado né? A May me mandou uma
mensagem pelo whats e eu queria compartilhar com você. – mostrou o celular que
exibia um print de uma ilustração do homem-aranha, mas era diferente do que
Paulo usava em todas as roupas e objetos, este tinha um uniforme preto com
detalhes vermelhos.
– Ela me disse que
estreou anteontem. E olha o mais interessante, ele é um garoto negro! Dá pra
imaginar representatividade maior que essa? Eu queria ter um super-herói negro
quando era criança. – a voz de Diego soava meio magoada, mas ao sentir mais um
agrado do marido em seu rosto, forçou um sorriso pálido.
– Você tá pensando em
levar o Paulo pra assistir? – não gostava de ver Diego daquele jeito
melancólico, então tentou mudar o foco da conversa pra ver se a animação que
ele esboçou quando mostrou a mensagem voltava.
– Sim, pensei em ir no
Domingo agora, nós dois estamos de folga, dá pra levar ele e passar um dia
legal. Eu quero fazer o máximo de coisas que deixe ele feliz antes das aulas
começarem... Sei que o Paulo tá animado pra começar a aprender, mas sei lá, se
eu me lembro bem, crianças costumam ser cruéis. – sentiu Marcelo abraçá-lo e
correspondeu ao gesto envolvendo o pescoço do outro com os braços. Ficaram ali
em silencio num abraço reconfortante por quase um minuto, mas quando eles se
afastaram Diego não tinha mais aquela expressão triste no rosto.
***
Quando no dia seguinte
contou a Paulo sobre o filme, mostrou o trailer e informou que iriam os três
naquele Domingo, o menino abraçou a perna de Diego com força suficiente para
quase fazê-lo cair.
– Você gostou da noticia,
hein? – ao que o menino respondeu com um efusivo gesto de cabeça positivo. Os
cachos castanhos balançando com força a cada movimento.
– Tá bom, mas é só depois
de amanhã. Entende? – pegou Paulo no colo e o colocou sentado na bancada,
enquanto exibia um calendário que ficava ao lado da geladeira. Era um daqueles que se ganhava em farmácias,
mas o importante era mostrar os dias.
– Hoje é sexta-feira, eu
e Marcelo ainda precisamos ir trabalhar. Amanhã é sábado, vamos estar em casa,
mas ainda não vamos ao cinema. No dia seguinte é domingo, é nesse dia que a
gente vai ver o filme, certo? – Paulo não tinha entendido muito bem, afinal nem
as horas do relógio ele sabia ler direito, apesar de Mayara o estar ensinando
ele já conseguia ver o que ela chamava de “Horas
inteiras”.
– E quando a May chegar,
agradeça a ela por ter me avisado do filme. Eu nem sabia que já tinha estreado.
– e assim que a moça apareceu, ganhou um abraço tão apertado quanto o que tinha
dado no irmão mais cedo. Então escreveu na lousa “vou ver homem arainha”, aquela palavra ainda era difícil de
escrever pra ele, apesar de que na sua cabeça soubesse exatamente como
pronunciar.
– É mesmo? O Diego e o
Marcelo vão te levar? Que legal Paulo! – ele apagou a lousa e escreveu “Obrigado May” ao que em resposta a moça
lançou um olhar repreensivo para Diego, como se dissesse “você o fez falar isso” ao que o corretor em resposta deu de ombros
em uma resposta silenciosa de “não fiz
nada de errado”.
Paulo estava se sentindo
elétrico, não via do dia depois de amanhã chegar pra ele finalmente ver aquele
desenho do seu herói favorito! E o melhor, pelo vídeo curto que Diego mostrou
no celular, era um garoto negro, (quase) como ele!
Todo esse seu interesse
pelo Homem-Aranha começou quando ele tinha uns quatro anos. A mãe alugou um DVD
com alguns episódios da serie clássica, o pai não gostou e fez ela devolver
antes da locação vencer, mas o “estrago”
como ouvia ele dizer, já estava feito.
Paulo desenhava a máscara
de Peter Parker, daquela forma estranha e incompreensível que apenas crianças
pequenas conseguem entender o que é e fingia atirar teias imaginárias pela casa
enquanto fazia o som com a boca. E mesmo sob os protestos do pai, ele continuava
gostando daquele super herói, “Amigo da
vizinhança”.
Sempre que o pai brigava
com a mãe (e às vezes até a machucava), ele torcia pro herói aranha vir
salvá-los e como que por mágica, o pai saia de casa por algumas horas, voltando
bem mais tarde e menos violento. Então, na cabeça de criança de Paulo, era o
Homem Aranha que de alguma forma fazia o pai parar de bater na mãe e ir embora.
Ele não sabia que Wando
na verdade ia embora para evitar mandar Beatriz pro hospital e acabar sendo
preso (mesmo que por pouco tempo, porque ele conhecia umas pessoas na central).
Mas, na imaginação infantil do garoto, era seu super-herói que evitava a
continuação das surras.
Nunca contou isso para
ninguém e se dependesse dele, mesmo que conseguisse voltar a falar, jamais
diria uma palavra sobre isso a ninguém. Era seu segredo mais querido e ele o
guardaria para sempre (Ou pelo menos até crescer e se esquecer).
Mas agora estava animado,
sentado a mesinha de centro colorindo e assistindo o Bob Esponja e sua risada
estranha na tevê, só pensava no Domingo e no filme e claro, em estar na
presença do irmão e de Marcelo, duas pessoas que pela primeira vez desde que
aquilo que ele passou a chamar de “O pesadelo” (a morte da mãe), lhe davam
segurança.
Olhou para Mayara no sofá,
que lia um livro sem ilustrações na capa e sorriu. Ela baixou o livro e lhe
sorriu de volta. Também tinha ela, a princesa índia mais linda que já tinha
visto na vida.
Não podia saber o que
aconteceria no futuro e nem tinha vontade de pensar (porque quando fazia isso,
sua cabeça doía e ele tinha vontade de chorar), mas naquele momento, naqueles
dias da semana, se sentia o menino mais sortudo do mundo e nada, nem ninguém
poderia arrancar essa felicidade dele.
Continua...
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