sábado, 3 de outubro de 2020

Lar é onde o coração está - Capítulo 09

 Abriu os olhos assim que viu que o sol já tinha nascido. Pulou da cama e trocou de roupa, foi ao banheiro, subiu no banquinho de plástico que usava para se ver no espelho e para abrir o registro do chuveiro ao tomar banho e escovou os dentes, penteou o cabelo, para em seguida ir até a sala, sentar-se no sofá e ficar esperando que um dos dois aparecesse.


Já sabia ligar a tevê e regular o volume, por isso ficou assistindo desenhos com um áudio baixíssimo por um tempo que pareceu longo demais. O que Paulo não sabia, era que ele tinha acordado às sete da manhã de um Domingo!

Sua empolgação para ir ver o filme do Homem-Aranha que “parecia com ele” era tanta, que o menino acordou duas horas antes do que costumava levantar.

Enquanto isso, no quarto, Diego abrir os olhos com uma sensação de que alguma coisa estava acontecendo. Ao olhar no quarto do irmão caçula e encontrá-lo vazio, foi até a sala, achando Paulo com os olhos sonolentos em frente da tevê.

– Oi, acordou cedo hoje, hein? – em resposta recebeu aquele sorriso cativante do menino e foi observado pelas grandes íris castanhas.

– Ainda é muito cedo, rapazinho. Você devia ir dormir mais um pouco, afinal, nem que a gente quisesse te levar agora, o shopping só abre daqui três horas. – viu a decepção estampar o rosto do menino e se sentiu mal por ter jogado um balde de água fria na felicidade dele.

Sentou-se no sofá e abraçou o irmão pelos ombros, olhando de relance o que ele estava assistindo. Um desenho que tinha como vilão um triângulo ciclope que usava cartola. O que esse pessoal ia inventar agora?

– Eu sei que você está animado pra ver aquele filme, mas a gente tem de esperar. Algumas coisas têm horário pra funcionar, sabe? E elas não abrem antes de dar a hora. Mas, já que você está acordado, que tal tomar café da manhã? – o menino escreveu “Quero” na lousa branca e quando perguntado o que gostaria de comer, levou alguns segundos para apagar e preencher a lousa novamente.

“leite de morango e miztou quente” – Diego riu internamente perante a frase, mas entendeu o que Paulo queria e em poucos minutos preparou, um copo de nesquick de morango e um misto quente, pão de forma recheado e bem tostado na frigideira.

Sentou na frente do garoto à mesa e ficou observando ele comer. Viu então um movimento de alguém vindo pelo corredor e quando Marcelo entrou no espaço sala-cozinha, cumprimentou-o com um sorriso e recebeu um beijo na têmpora esquerda em resposta.

– Mas já tá acordado, menino? – falou Marcelo, recebendo um risinho de Paulo, meio abafado pelo pedaço de lanche na boca.

– Ele tá animado demais pra ver aquele filme. Eu expliquei que o shopping ainda não tá aberto e ele é um rapaz inteligente e entendeu, né? – concordou com um gesto de cabeça para em seguida engolir um gole longo do leite de morango.

Aquela seria a primeira vez que ele iria ao cinema na sua vida. Estava ansioso, mas ao mesmo tempo muito feliz. Queria contar isso aos dois, agradecer, falar o quanto estava animado, mas sua voz ainda não queria voltar.

***

Saíram de casa por volta do meio-dia, iam almoçar no shopping e então comprar os ingressos pra sessão das duas da tarde. Ele estava sentado no banco de trás, observando Marcelo e seu irmão conversarem. Foi tão simples para ele chamar Diego de irmão, mesmo com todas as coisas horríveis que seu pai dizia sobre o rapaz, Paulo não via nada de ruim em nenhum dos dois.

Na verdade, desde que perdeu a mãe, aqueles dias que estava morando com os dois, o fizeram se sentir acolhido, apesar de ele não saber essa palavra, então costumava pensar que se sentia “seguro”.

Estava levando a mochila que trouxe quando Rosário o levou para a casa deles, mas agora havia um enorme adesivo brilhante com a máscara de Peter Parker sobre o bolso de fora da mochila e dentro dela, estava seu quadro branco, a caneta e o apagador.

Viu o carro entrar num lugar onde leu com esforço a palavra “tacionamento” e após alguns minutos de procura por uma vaga, Marcelo estacionou e os três desceram e Paulo olhou para aquele prédio grande que era o shopping, o mesmo no qual havia ido há algumas semanas com Diego e Mayara. E pensou que aquele lugar ele já conhecia.

Mas ainda assim, estendeu a mão para o irmão, em um gesto silencioso pedindo para que a segurasse e quando ele o fez, estendeu a esquerda para Marcelo, que também a segurou.

Entraram no shopping e Diego percebeu um ou outro olhar de reprovação para eles, nada que já não tivesse sentido antes, mas agora tinha Paulo para proteger e não queria que o comportamento homofóbico de terceiros se estendesse ao garoto, por isso iria fingir por enquanto que não estava vendo aquelas expressões de repudio e raiva na cara de algumas pessoas que passavam por eles.

Almoçaram no mesmo restaurante que ele foi com Diego e Mayara há algumas semanas. Ouvia os dois conversarem sobre seus trabalhos, coisas da casa e amigos em comum e por um instante se sentiu meio triste, como se não fizesse parte da situação. Estava ocupado empurrando um pouco de arroz de um lado para o outro do prato, que tinha sobrado de um bolinho que veio junto de carne e salada. Não estava mais com fome.

– Ei Paulo, tá animado pra ver o filme? – teve sua atenção atraída pela voz de Marcelo, que estava sentado ao seu lado e de frente para Diego. Em resposta, sorriu, exibindo aquela janelinha do dente faltante na frente e pegando a lousa na mochila, para escrever “Muito. Nunca fui no cinema. Quero muito ver o homiranha”.

Diego sufocou um risinho ao ver a grafia das palavras na lousa. Se esforçava sempre para não rir quando lia algo que Paulo escrevia, para não desencorajar o menino de se aprender, mas ler “homiranha” era algo que sempre o fazia rir. Era bonitinho. 

Recebeu então um olhar do marido, que em seguida correu novamente para a pequena lousa, a segunda sentença se destacou na leitura e Diego entendeu o que Marcelo quis dizer a ele com aquele olhar. O menino nunca tinha feito várias coisas e isso estava claro, afinal, o pai era um bronco fanático religioso e sua mãe... Bom, digamos que ela estava submissa ao marido por medo.

– Então hoje vai ser um dia muito legal. – complementou enquanto via o garoto guardar a lousa novamente na mochila.

Devolveram as bandejas para o restaurante e rumaram para a bilheteria do cinema. Mais uma vez, Paulo fez questão de segurar na mão de ambos, ficando no meio deles e sorrindo em alguns momentos.

“Como podem sujeitar uma criança a esse tipo de coisa?” – a frase chegou até Diego como um cheiro ruim que invade seu espaço pessoal e ocupa tudo. Olhou por sobre o ombro esquerdo e viu duas mulheres de meia idade encarando-os de forma fixa e nada discreta, mas quando notaram que ele as observava, elas começaram a se mover.

– Algum problema? – Marcelo perguntou, ao que respondeu dando uma desculpa qualquer. Não queria estragar o passeio do irmãozinho, mas parecia que ia ser um longo e cansativo dia.

Pegaram ingressos numa das filas do meio, três lugares um ao lado do outro. Como Diego havia pagado o almoço, Marcelo pagou os ingressos, mas ambos concordaram que comprariam as coisas de comer no cinema juntos.

Ainda faltava quase uma hora até o filme, então eles levaram Paulo para brincar na área de recreação do shopping. Piscina de bolinhas era sempre uma favorita das crianças (caramba, até dos adultos!) e o menino ficou lá, mergulhando no mar de bolinhas e emergindo de vez em quando para dar um oi a eles, que estavam sentados num dos bancos do espaço.

– O que tá acontecendo Di? Você está se comportando de um jeito estranho. – ouviu Marcelo perguntar, enquanto ele dobrava as meias de Paulo e as colocava dentro dos sapatos.

– É o mesmo de sempre. Aquele tipo de gente, os olhares, os comentários sussurrados, mas não tão baixo que a gente não possa ouvir. Só que agora estão sendo direcionados pra ele. – respondeu chateado, mas abrindo um sorriso e acenando quando o irmão apareceu na tela da piscina de bolinhas. Assim que o garoto mergulhou novamente, o sorriso desapareceu.

– Eu aguento, sabe? A gente já tá acostumado a lidar com essa merda desde sei lá quantos anos, mas ele não tem nada haver com isso e eu não quero que ninguém o magoe... – depositou a mão sobre o banco, sentindo o dedo mindinho do marido encostar no seu, com carinho.

– Sei que você quer proteger o Paulo, mas mês que vem ele vai pra escola, ele vai precisar sair mais vezes conosco, não vai dar pra por o garoto numa redoma de vidro. Em algum momento esse preconceito vai acertar ele também. O que podemos fazer é estar lá quando ele precisar. – Diego sentiu os olhos arderem e fungou baixo em uma tentativa de segurar o choro. Não era do tipo que chorava fácil, mas só de imaginar o que o irmãozinho sofreria por ser criado por eles, os ataques homofóbicos contra uma criança que estava tão traumatizada que nem conseguia falar!

 – Tem razão. Mas eu não consigo aceitar como as pessoas podem ser tão cruéis de forma gratuita assim. Tá, tá, sempre foram e sempre vão ser, é a natureza podre humana, mas, olha pra ele, eu não quero que ele fique triste. – pensando em todo o horror que sofreu desde que tinha quase a mesma idade de Paulo, quando o padrasto se casou com a mãe e suspeitando que o homem estendeu seus “métodos” ao menino que brincava alegre na sua rente, Diego pensou em como a vida era injusta quando se tratava de felicidade.

– É, eu tenho de ser forte pra dar apoio a ele. Paulo, vamos que o filme começa daqui a pouco. – falou alto enquanto se levantava do banco e ia ajudar o garoto a sair do espaço de tela reservado para as bolinhas coloridas de plástico.

Enquanto via Diego ajudando o irmão a colocar os sapatos, Marcelo pensou mais uma vez em quanto algumas semanas de convivência com o menino fizeram diferença no comportamento do marido.

Antes da chegada de Paulo, mas poucas vezes que Diego falava do garoto, referia-se a ele sempre como “aquele filho que a Beatriz teve”. Ele se recusava a chamar mulher de mãe ou reconhecer a existência do menino e agora estava ali, ajudando-o a amarrar os sapatos.

***

Compraram um balde grande de pipoca, com a estampa do filme claro, que eles dividiriam entre os três, refrigerante e mais algumas porcarias que Paulo escolheu numa loja de conveniência do shopping, porque segundo Diego “As coisas na bomboniere do cinema custam um absurdo!”.

Esconderam tudo na mochila do garoto, com exceção do balde de pipoca e após entrarem e se acomodarem nos lugares escolhidos, Paulo foi contando os números das fileiras e das poltronas mentalmente, então as luzes se apagaram e o filme finalmente começou, para total admiração do menino.

Ele assistiu maravilhado do começo ao fim. Quase não tocou na pipoca e esqueceu os doces na mochila, estava vidrado naquele personagem que tinha a pele parecida com a dele e era um garoto, como ele!

De tempo em tempo tanto Diego quanto Marcelo dava uma espiada no garoto sentado entre eles, apenas para comprovar a total adoração estampada no rosto do menino pelo que estava passando na telona a sua frente. Em certo momento olharam um para o outro por sobre o topo da cabeça de Paulo, que continua hipnotizado pela animação.

O olhar que trocaram parecia dizer “Que bom que trouxemos ele” e “Estou feliz que você tenha vindo com a gente”.

O filme finalmente acabou e as luzes se acenderam, mas Paulo continuava encarando a tela como se esperasse alguma coisa a mais e quando olharam ao redor, notaram que várias pessoas, não apenas as crianças, mas diversos adultos permaneciam sentados em suas poltronas.

E então surgiu a primeira cena pós-crédito, uma homenagem ao criador do personagem, que faleceu no ano anterior e então uma cena apresentando um novo personagem e uma piada daquele meme clássico do Homem-Aranha dos anos 60, que fez os dois rirem junto de Paulo.

E ai sim, o pessoal começou a sair. E enquanto eles jogavam o resto da pipoca e as latinhas vazias no lixo, Marcelo segurava a mão de Paulo, quando Diego ouviu um cara grande e com uma expressão de poucos amigos murmurar enquanto passava ao lado dele “viados”.

Quase foi atrás do ser e comprou uma briga, mas, ao olhar para o marido que carregava Paulo no colo e fazia sons como de “teias sendo atiradas” conforme o menino mexia as mãos em direções opostas, achou melhor deixar quieto. Se eles não tinham ouvido, então não havia motivo pra comprar briga, apesar de ele querer muito.

***

Depois de mais algumas fichas para a piscina de bolinhas e um sorvete de casquinha para cada um, deram o dia por encerrado e os três foram até o estacionamento buscar o carro.

Paulo se manteve acordado durante o trajeto, lembrando as cenas do filme que mais gostou e ao chegar em casa, obedeceu Diego e foi tomar banho, vestindo um dos seus quatro pijamas favoritos e vindo para a sala, pois ainda era seis da tarde.

Ele então se aninhou entre o irmão e Marcelo que estavam vendo um filme numa língua que ele não entendia, acompanhado de palavras que surgiam e sumiam da tela rápido demais para que pudesse ler, mas não tinha problema, estar ali com eles o deixava feliz. E pouco mais de meia hora depois, ele adormeceu, fato que só foi notado por Diego quase uma hora depois.

– Eu ponho ele na cama, volto daqui a pouco. – disse Marcelo enquanto juntava aquele pacotinho adormecido que era Paulo e o levava até o quarto, depositando-o com cuidado na cama e cobrindo-o com o lençol.

Não se imaginava sendo pai, pelo menos não tão cedo, mas a chegada do menino aflorou nele instintos paternos que nem sabia que poderia ter e a verdade é que, estava gostando daquela sensação de ter mais alguém pra proteger e cuidar.

Quando voltou pra sala, encontrou Diego adormecido numa posição torta e que com certeza lhe daria dor no pescoço caso não fosse mudada. Acordou-o com cuidado e o convenceu a ir deitar na cama, “ou amanhã você vai acordar com torcicolo”, normalmente Diego resistia e às vezes, até discutiria com ele para que o deixasse quieto ali, mas não hoje.

Ajudou o marido que estava sonolento a se trocar e deitou-o na cama, dando um beijo suave nos lábios dele, para em seguida cobri-lo com o lençol e sair do quarto. Não estava cansado, o que era estranho, afinal os três fizeram as mesmas coisas durante o dia. Mas havia alguns fatores particulares que cansaram tanto Diego quanto Paulo. O primeiro foi o estresse de que alguém pudesse falar algo que magoasse o menino e o segundo era toda a animação por fazer tantas coisas novas pela primeira vez.

Mas foi um dia legal, disso todos tinham certeza.

Marcelo pensou que quando o marido acordasse, perguntaria o que ele achava de convidarem Francisco e o namorado para o jantar de aniversário deles. Voltou então para a sala, só que ao invés de ligar a tevê de novo, pegou um livro que estava lendo há algumas semanas.

Amava Diego e adorava Paulo, mas às vezes gostava de ficar alguns momentos sozinho, apenas curtindo o silencio e sua própria companhia.

Continua...



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