Quando Mayara viu os faróis do carro entrando na garagem, estava quase cochilando. O relógio na sala marcava 01h00 da manhã, Paulo já estava dormindo há mais ou menos três horas e ela tinha tentado se distrair assistindo uma bobagem na tevê até que o sono começou a bater.
A porta foi aberta e
Marcelo entrou primeiro, estava um pouco embriagado, mas ainda sociável o
bastante para cumprimentá-la antes de se largar numa das cadeiras da cozinha.
Diego vinha logo atrás e apesar de ter sorrido ao ver a moça, ela percebeu que
algo não estava certo ali.
– Ma, vai tomar um banho
enquanto eu levo a Mayara embora, tá bom? – sugeriu enquanto tocava de leve o
braço do marido, que resmungou como uma criança birrenta, mas no fim acabou
aceitando a sugestão.
Assim que entraram no
carro, a moça ouviu o amigo se desculpar pela demora.
– Eu planejava voltar
mais cedo, mas o Marcelo bebeu um pouco demais e o Francisco o acompanhou e
bom, você viu como ele tá né? – ele suspirou cansado enquanto girava a chave na
ignição e mudava de assunto, perguntando sobre Paulo.
– Ele viu um pouco de
desenho comigo até umas onze e daí quando vi que tava começando a bater o sono,
fiz colocar o pijama e foi a cabeça dele tocar o travesseiro, pronto, já tinha
apagado. – ela olhou para a calçada vazia e pensou se si atreveria a perguntar
algo. Respirando fundo, começou.
– Di, desculpa se eu
estou sendo xereta e você não precisa responder, mas, tá acontecendo alguma
coisa entre você e o Marcelo? Sua expressão quando entrou em casa hoje era
super tensa. – Diego soltou outro suspiro enquanto girava o volante para a esquerda
e parava num sinal, olhando para os lados por conta do horário morto.
– Aconteceu e não
aconteceu na verdade. Sabe aquela pequena voz insuportável que fica buzinando
na sua cabeça de que tem algo errado e que vai dar merda? Então, eu tenho uma
dessas 24h por dia. Piorou depois que o Paulo veio morar com a gente, mas, não
me entenda mal, eu o adoro, é só que com uma criança em casa muita coisa da
nossa rotina tiveram de mudar, tanto eu quanto o Marcelo tivemos de abrir mão
de um bocado de privacidade e... – o sinal abrir, obrigando Diego a continuar
dirigindo.
Mayara o encarava
silenciosa e paciente.
– Eu acho que o Marcelo
tá meio incomodado com essas mudanças, sabe? A gente saia bastante e tínhamos a
casa só pra nós, mas agora... Tá diferente e eu comecei a ter estes pensamentos
de que ele vai me largar logo. – ela viu o rapaz forçar um sorriso doloroso e
tocou-o no ombro com carinho em resposta.
– Daí hoje a gente saiu
com o Francisco e o Joaquim e teve uma hora que a conversa foi pra essa coisa
de “vocês pretendem ter filhos” e
eles disseram que talvez um dia, mas não agora e eu quase pude sentir o
incomodo do Marcelo, tipo, “me empurraram
esse fardo antes que eu pudesse decidir o que fazer”. – Diego fungou,
segurando o choro. Os olhos ardiam e doíam pela força que estava fazendo para
não derramar lágrimas, mas não queria deixar que a moça visse.
– Di, você já conversou
sobre isso com ele? Digo, sobre essas suas inseguranças? Talvez se colocar tudo
pra fora, você pode ver que as coisas não são assim como a sua cabeça tem te
feito acreditar. – o carro fez uma curva suave para a direita e a moça avistou
a casa que dividia com suas mães há apenas alguns metros de distância.
– Que acha disso, amanhã
eu e a Letícia podemos vir buscar o Paulo para passarmos algumas horas juntas e
vocês conversam com calma. – ouviu Diego recusar, lembrando que ela tinha um
encontro com a outra moça no Domingo.
– É muito gentil, mas eu
não quero abusar da sua boa vontade, afinal, você veio hoje a noite ficar com
ele enquanto a gente saia, inclusive! – viu o amigo abrir a carteira e pegar
algumas notas, tentou recusar, mas ele enfiou o dinheiro na sua bolsa, dizendo
para que aceitasse.
– Ou eu é que vou ficar
chateado e você não quer me deixar triste, né? – ela deu um pequeno sorriso e
apertou a mão que estava em cima da sua bolsa, sentindo a quentura daquela pele
macia.
– Conversa com ele, Di, o
Marcelo é um cara legal e eu sei que vocês vão conseguir resolver isso juntos.
Me deixa atualizada, tá? – deu um beijo suave na bochecha do amigo e desceu do
carro, caçando as chaves na bolsa e como sempre, ele só foi embora depois que
ela entrou em casa.
Entrou em silencio para
não acordar suas mães e ao entrar no quarto, se atirou na cama com a roupa que
estava usando e murmurando “vou cochilar
só cinco minutos e depois tomo um banho...”. Mas acabou varando a noite.
***
Chamaram mesmo um uber.
Francisco tinha abusado do chope, mas Joaquim se controlou e bebeu no máximo
duas cervejas, afinal, um dos dois tinha de estar consciente para pagar o
motorista e achar as chaves do apartamento!
Agora sofria para manter
o namorado em pé e a diferença de altura não ajudava em nada. Francisco
balbuciava coisas sem sentido e ria, as bochechas estavam vermelhas e a cada
frase sibilada que ele dizia, o bigode se elevava por alguns segundos.
– Tá, agora fica bonzinho
aqui até eu achar a chave, certo? – tinha sido uma noite agradável, sair com o
outro casal foi divertido, apesar de que em alguns momentos podia notar
vislumbres de incomodo no rosto de Diego e que ao que tudo indicava, eram
direcionados a Marcelo.
Abriu a porta e fazendo
Francisco enlaçar seus ombros, puxou-o para dentro, dando graças por não ter
nada em que tropeçar na entrada. Dali guiou o namorado até o banheiro, onde o
ajudou a se despir e colocou-o para tomar uma ducha morna. Sempre ouviu que
banho frio cortava a bebedeira, mas não tinha coragem de fazer isso com
Francisco.
Quando o viu sair, entrou
no lugar e alguns minutos depois, ao entrar no quarto ao mesmo tempo em que
secava o cabelo, viu o namorado largado na cama, trajando apenas cuecas e
dormindo a sono solto. E ao vê-lo ali sorriu apaixonado e deitou-se ao seu
lado, sentindo o braço firme do outro envolvê-lo em um abraço carinhoso e
sonolento.
***
Tinha tomado um banho,
como Diego sugeriu e conferido se Paulo estava dormindo bem e após confirmar,
naquele momento, estava sentado no sofá assistindo algo com o volume
baixíssimo, mas não era problema, afinal era um filme legendado.
Naquele momento, todos os
pensamentos sobre a imposição de receber o garoto na casa e a perda da
“liberdade” que tinha antes estavam enterrados no fundo da sua mente. As vezes
pensava aquelas coisas mesquinhas e sim, as vezes sentia falta de como era antes,
mas gostava do menino e o mais importante, amava Diego.
Ouviu o som do motor e
viu os faróis através da porta de vidro, o que informava que o marido tinha
voltado. Viu ele entrar com os ombros baixos e uma expressão que indicava que
estivera chorando ou segurando a vontade de chorar.
– Oi? – falou ao mesmo
tempo em que se levantava do sofá e ia na direção de Diego, abraçando-o com
carinho. Não sabia o que tinha acontecido, mas queria mostrar que estava ali
pra ele, mas para sua surpresa o gesto surtiu efeito reverso e ai sim, o rapaz
desabou no choro.
– Ei, o que aconteceu?
Fala comigo Di. – fungou dentro do abraço, se perguntando mentalmente se
deveria contar sobre aqueles pensamentos intrusivos? Será que Marcelo não o
acharia um idiota? Estavam juntos há mais de oito anos, mas nunca foi muito
aberto sobre seus sentimentos, porque tinha medo de ser julgado.
– Não sei se é uma boa
ideia. Eu posso acabar estragando tudo. – murmurou contra o peito do outro,
enquanto sentia os olhos arderem com as lágrimas que tinha segurado por tanto
tempo.
– Tenta falar, prometo
que não vou te julgar. – desvencilhou-se do abraço e foi até o pequeno corredor
que ligava os quartos a sala, fechando a porta que os conectava. Não queria que
Paulo ouvisse sequer ruídos do que ele ia dizer.
Sentaram-se no sofá e
então, após respirar fundo algumas vezes, Diego contou sobre seu pavor mais
recente, porque ele tinha muitos ligados aquele relacionamento, apesar de todo
o apoio que Marcelo lhe oferecia. O que podia fazer? Era clinicamente ansioso!
Falou sobre o medo de ser
abandonado, do receio de que a chegada do menino tivesse impactado de forma
negativa a vida de casal deles e de como às vezes tinha certeza de que impôs
aquilo ao outro e que por isso tudo, se cobrava mentalmente com frequência.
– Eu me sinto horrível
por falar essas coisas, mas não dá mais pra guardar pra mim. Hoje eu vi na hora
que o Joaquim falou que eles não pretendem ter filhos tão cedo, eu vi que você
ficou incomodado, talvez até tenha pensado em como eu só joguei esse fardo em
cima da sua cabeça. – tentava segurar o choro, mas isso fazia sua cabeça pulsar
de dor e no fim acabou deixando tudo desabar.
Durante todo o tempo em
que falou, Marcelo permaneceu em silencio, apenas ouvindo e encarando-o
iluminado pelo brilho da tevê cujo volume havia sido abaixado por completo.
– Vai dizer alguma coisa
ou só ficar me olhando com essa cara? – soltou por fim irritado. Ouviu o som da
descarga no corredor e então, uma porta se fechando e lançou um olhar nervoso
para o corredor cuja porta tinha sido fechada.
A cabeça de Marcelo
estava fervilhando com as novas informações e ele pensava numa forma de
responder o outro sem demonstrar que tinha ficado magoado.
– Você lembra do dia em
que a Rosário te ligou falando que o Paulo ficou sob a sua guarda, né? E lembra
do que eu disse naquele dia? Não lembra? Tudo bem, eu lembro. Eu disse “sei que é assustador, mas a gente vai
conseguir cuidar dele, juntos. Eu estou aqui com você.” – ele tinha
escolhido ajudar na criação do menino, em nenhum momento aquilo lhe foi
imposto.
– O Paulo não é um fardo.
Você não jogou nada em cima de mim, eu que quis cuidar dele, ao seu lado. Agora,
eu sei que você sofre com essa ansiedade ferrada há anos, antes de eu te
conhecer e você tem todos os motivos pra ter ela, não, eu não vou entrar
naquela discussão de psicólogo de novo, não é o momento. – pegou a mão de Diego
nas suas e a acariciou com gentileza, encarando aqueles olhos chorosos, cor de
caramelo que eram tão parecidos com os de Paulo.
– Estamos indo pra três
meses com ele aqui em casa e temos nos adaptado aos poucos. Eu percebi o quanto
você se preocupa em me satisfazer na cama, mas eu não quero que você se
preocupe tanto com isso. Sexo é bom, claro, mas meu amor por você não se limita
a isso. Você é... Tudo pra mim. – viu o marido soluçar enquanto mais lágrimas
escorriam pelo rosto bonito e moreno e em um gesto impulsivo, secou algumas com
o polegar.
– Eu não vou mentir e
dizer que não pensei essas coisas que você disse, é muito raro, mas às vezes eu
tenho alguns pensamentos egoístas, mas depois quando eu volto a ter controle do
meu pensamento, me sinto mal e envergonhado por eles, afinal, não são coisas com
as quais eu concorde. Mas em 99,99% do tempo eu gosto muito de cuidar do Paulo
e amo ter você aqui comigo. Então, vamos fazer um trato aqui, sempre que esse
tipo de pensamento idiota começar a aparecer, você me fala, tá bom? – Diego
enxugou o rosto com certa bruteza e sorriu de forma genuína.
Saber que o outro também
tinha aqueles pensamentos intrusivos às vezes fez com que se sentisse menos
solitário, menos estranho. Sentiu-se ser abraçado com carinho e o calor morno
do corpo do marido em volta do seu o acalmou.
Sentiu o peso morno do
corpo macio de Diego quando ele adormeceu sobre seu ombro, enrolado como uma
bolinha no sofá. Olhou para aquele rosto bonito, meio inchado por causa do
choro, mas ainda o mesmo rosto do rapaz por quem se apaixonou há anos atrás.
Levou-o até o quarto,
Diego estava semi-acordado e quase deu uma topada no batente da porta. Após
ajudá-lo a se trocar e colocá-lo na cama, Marcelo retornava para a sala, quando
ouviu a porta do outro quarto abrir e viu o rosto sonolento de Paulo brotar na
fenda.
– Marcelo, eu tive um
sonho ruim. Posso dormir com vocês? – sorriu e deu meia volta, pegando o menino
no colo e levando-o até o quarto deles, depositando-o na cama ampla de casal.
– Fica aqui com o Diego,
eu vou só desligar a tevê e já volto. – antes de sair, ouviu o menino pedir um
pouco de água, mas quando voltou com o copo, Paulo já estava adormecido de
novo, encostado nas costas do irmão. Marcelo sorriu.
É, as coisas estavam
diferentes e mudariam ainda mais no futuro, mas ele queria se adaptar aquela
nova rotina. Era isso que significava ter uma família.
Deitou-se na outra ponta
da cama, deixando o menino entre os dois e adormecendo em poucos segundos.
Amanhã seria domingo e ele podia dormir um pouco mais. Fechou as pálpebras mais
tranquilo de que Diego tinha enfim tirado aquele peso do peito.
Continua...
Nota da autora:
Olá pessoas queridas!
Capítulo 21 aqui! E
assim, o Diego é ansioso crônico e por isso esta não foi a única situação em
que ele vai ter pensamentos intrusivos atrapalhando o relacionamento dele com o
Marcelo.
Espero que tenham gostado
do capítulo e adianto que no próximo vai ser o encontro da Mayara com a
Letícia.
Não sei vocês, mas eu
estou gostando tanto de escrever essa história, personagens humanos e situações
cotidianas são duas coisas que eu adoro. Ah, e adianto aqui que também estou
tentando desenvolver capítulos para outras histórias que estão em hiato há
algum tempo e se tudo der certo, até o meio do ano boa parte delas vão voltar a
serem atualizadas!
Obrigada por ler esse
capítulo e um agradecimento em dobro se você puder deixar um comentário (talvez
você não saiba, mas sua opinião é um combustível para eu continuar escrevendo e
não custa nadinha de nada!).
Enfim, é isso pessoal,
até o próximo capítulo
Perséfone Tenou
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