A maioria dos
convidados já havia chegado quando Diego e Marcelo entraram com Paulo que
exibia uma expressão amuada ao ver que não havia nenhuma outra criança no local
além dele, mas assim que Lola o viu, a mulher o abraçou e encheu de beijos,
para em seguida levá-lo a mesa onde estavam os salgados e dar um pratinho com
uma boa quantidade para o menino.
Do outro lado da
sala de estar, que havia sido esvaziada para os convidados transitarem e também
para montar o pequeno púlpito onde a juíza de paz celebraria os votos das duas
senhoras, Mayara cumprimentava os recém-chegados com um gesto de cabeça e um
sorriso cansado. Apesar de todos os remédios e práticas para se livrar das
cólicas, ela continuava sentindo como se uma enorme mão invisível a apertasse
com violência por dentro e em um gesto de reflexo, apertou o braço de Letícia
com um pouco de força.
— Você quer sentar
um pouco? Eu posso buscar uma cadeira e... — a morena interrompeu a namorada
com uma negação de cabeça, onde já se viu ela sentar, quando era a festa de
bodas das suas mães! Mas agradeceu num murmúrio a preocupação da outra.
— Eu aguento, só
fica aqui do meu lado, por favor. — Letícia olhou para a moça ao seu lado
exibindo uma expressão forçada de alegria enquanto os dedos longos dela
envolviam seu pulso esquerdo com certa urgência. Queria dizer a Mayara que ela
estava linda naquele vestido delicado de cetim azul-marinho e que o perfume
dela era delicioso, queria dizer tanta coisa, mas sabia que naquele momento o
que a outra precisava era saber que ela ficaria ao seu lado.
— Não saio do seu
lado por nada. Respira fundo e lembre-se, se precisar de uma cadeira, eu vou
buscar pra você. — Diego estava se aproximando das duas e ao abraçar a amiga,
sentiu que por alguns segundos ela deixou o peso do corpo cair sobre ele,
sinalizando estar exausta.
— A festa ficou
linda May, parabéns por todo o esforço e organização, mas, você ta bem? — ao
que viu a moça verbalizar em silêncio uma única palavra, “cólica” e se compadeceu por ela.
***
Quando chegaram à
casa de Lola e Joana, estavam quase uma hora atrasados do horário informado,
mas tinha sido culpa de Francisco que pegou uma rua errada e os fez virar em
círculos no bairro. Mesmo assim Joaquim não estava bravo com o namorado por
isso, afinal essas coisas aconteciam.
Assim que tocou a
campainha, pensou pela enésima vez naquela noite se tinha sido uma boa idéia
virem, talvez Lola só os tivesse convidado por educação, talvez tivesse sido
melhor eles não...
— Vocês vieram,
que bom! Entrem, entrem! — a senhora negra idosa falou animada quando os viu
ali a sua frente e antes que passassem pelo batente, Lola fez questão de
abraçar cada um dos dois e em seguida chamar a esposa para apresentá-los e
quando Joaquim viu Joana, pensou que ela poderia muito bem ser a mãe biológica
de Mayara, tamanha era a semelhança.
— Jo, esse é
Joaquim, ele que tem cuidado da loja. E esse aqui é o namorado dele, Francisco.
Essa é minha esposa, Joana. — cumprimentaram-se e os rapazes desejaram
felicitações pelas bodas das duas para em seguida se misturarem com os demais
convidados.
Enquanto Francisco
puxava Marcelo para conversar, Joaquim se aproximou de Mayara, que estava com
Letícia e Diego e claro, Paulo, que olhava a conversa dos adultos com um
interesse genuíno.
— Oi pessoal. —
saudou o loiro meio sem jeito, de todos ali, a única pessoa com quem ele tinha
conversado um pouco mais foi Mayara, mas quando o viu, Diego abriu um sorriso
simpático e o cumprimentou, para em seguida convidá-lo a ir com ele até a cozinha,
pegar uma taça de espumante. “Uma só não
vai fazer mal”.
Paulo permaneceu
em pé ao lado de Mayara, observando como a moça parecia estranha. A pele dela
estava alguns tons mais claros, como se a cor tivesse fugido e ela mordia o
lábio inferior de tempo em tempo. Será que ela tinha pegado um resfriado?
— Então Paulo,
sabia que a Talita vai vir pra cá semana que vem, passar uns dias na casa dos
meus pais? — o menino abriu um sorriso alegre ao ouvir Letícia dizer aquilo e
perguntou se eles poderiam ir soltar pipa de novo.
— Claro, só
precisamos pedir pro seu irmão primeiro. Você ainda tem aquela pipa que eu te
dei no começo do ano? — o menino se animou ao contar que sim, que ela estava
guardada com cuidado no maleiro do guarda-roupa do irmão.
— Que legal, a
Talita vai ficar feliz de te ver de novo também. Ela sempre pergunta de você
quando falo com ela pelo skype. — Letícia lançou um olhar rápido para a
namorada, que começava a dar sinais de que ia escorregar pela parede a qualquer
segundo e em seguida se abaixou na altura de Paulo para sugerir que ele viesse
com ela buscar uma cadeira para Mayara.
Enquanto iam até a
cozinha, o menino perguntou o que a moça tinha, ao que Letícia tentando
explicar, mas sem entrar em detalhes que o garoto não entenderia, disse que a
morena estava com um pouco de dor de barriga e de cabeça.
— Ela ficou
cansada, sabe? Organizar essa festa foi bem difícil. Mas a gente vai ajudar
ela, não é? — o menino fez um gesto de positivo com o polegar e sorriu,
enquanto ajudava a outra moça a pegar uma das cadeiras na cozinha. Ele gostava
de Letícia e gostava mais ainda que ela cuidava bem de Mayara.
Joaquim e Diego
conversavam sobre cinema e filmes que gostariam de ver futuramente e o loiro
podia confirmar que se sentia confortável falando com o outro, era como se
fossem amigos há um bom tempo, e apesar de saber que não conhecia o outro há
tempo o suficiente para falar de assuntos mais particulares, mesmo assim,
aquele sentimento de que tinha outra pessoa além de Francisco para conversar,
nem que fossem amenidades, o deixou feliz.
— Dá pra acreditar
que elas estão fazendo 35 anos de casadas? — Diego perguntou animado enquanto
tomava um gole de espumante e via Joaquim exibir uma expressão meio deslocada e
ao mesmo tempo surpresa.
— Pois é, tanto
tempo juntas, deve ser incrível... — O loiro olhou para um ponto qualquer na
cozinha e então após decidir mentalmente que devia levar aquela conversa em
frente, perguntou.
— Me diz uma
coisa, Diego. Como é ser casado? Digo, a dinâmica do cotidiano é muito
diferente de quando vocês namoravam? — ouviu o outro comentar que a única
diferença na verdade era que eles agora moravam na mesma casa, “E tem o Paulo, mas isso é outra coisa”.
— Então... Vocês
só foram no cartório e assinaram os papéis e foi isso? Não mudou nada na vida
de vocês? — assim que as palavras saíram, o loiro se deu conta de que tinha
sido grosseiro e emendou um pedido de desculpas, enquanto sentia o rosto esquentar.
— Eu não tou
acostumado a conversar com outras pessoas e às vezes sai... Essas pérolas do
absurdo... — desviou o olhar para um ponto acima da geladeira onde um pingüim
de cerâmica usando touca e cachecol assistia a conversa deles com uma expressão
fixa de desinteresse.
— Não, ta tudo
bem, eu entendi o que você quis dizer. Sabe, na pratica é isso mesmo, nada
mudou, a gente continua indo trabalhar, fazendo as compras do mês, saindo de
vez em quando, mas aquele pedaço de papel me confirma que o Marcelo é meu
marido, e que eu sou o dele. Talvez não pareça grande coisa pra quem ta de
fora, mas pra mim é importante saber que a nossa união é reconhecida pela lei.
— Diego se sentiu meio sem jeito com o olhar fixo que o outro rapaz estava lhe
dando, mas ao ouvir o comentário que veio em seguida, não conseguiu deixar de
sorrir.
— Parece um motivo
muito bom pra casar... Eu perguntei isso porque já faz um tempo que o Francisco
vem sugerindo que a gente também deveria casar, sabe, no cartório, mas eu tenho
um pouco de receio... Sei lá. — Diego olhou para aquele rapaz loiro na sua
frente e pensou que, apesar de terem poucos anos de diferença, naquele momento
ele se sentia tão mais adulto e vivido, o bastante para talvez arriscar dar um
conselho.
— Joaquim, eu vou
falar uma coisa, mas você não precisa aceitar só porque Fui eu quem falou, mas,
por mais que você goste do Francisco, a decisão de aceitar ou não oficializar o
relacionamento de vocês é apenas sua. Não aceite por pressão ou só porque você
quer agradar ele. Faça só quando sentir que é o que você também quer. — era uma
coisa extremamente obvia, mas ao ouvi-la de outra pessoa, o loiro percebeu que
fazia tanto sentido quanto quando ele dizia isso para si mesmo.
— Obrigado pelo
conselho, Diego e por não ficar irritado com toda essa porcaria que eu falei
antes... — ouviu o outro dizer “não se
preocupe com isso” e ele ia dizer mais alguma coisa, mas Mayara começou a
chamar os convidados para virem presenciar os votos de bodas de suas mães.
Em frente a
lateral da escada que levava aos quartos, havia sido montado um pequeno púlpito
atrás do qual estava a ministra de paz, uma senhora asiática de cabelos
grisalhos presos em uma longa trança lateral, que após ver que todos os
convidados haviam se agrupado ao redor do espaço, sorriu de forma terna e
começou a falar.
— Queridas pessoas
presentes, estamos hoje aqui para celebrar as bodas de 35 anos de Dolores e
Joana, que optaram por reafirmar seu amor através de votos escritos por elas. —
em seguida a mulher fez um gesto na direção das duas idosas, que se
aproximaram.
— Posso ir
primeiro, querida? É capaz que eu me atrapalhe e demore o dobro do tempo mas...
Tá bom... Tá bom. — articulou Joana enquanto segurava uma das mãos da esposa,
enquanto que com a outra, aproximava um cartão de papel perto dos olhos e
comentava “quando se chega nessa idade...”
fazendo os convidados rirem baixinho.
— Dolores, eu me
lembro como se fosse hoje do dia em que te vi pela primeira vez. Você estava em
uma manifestação pelos direitos das mulheres, exibindo a expressão raivosa mais
linda que eu já tinha visto, com aquele cabelo afro bonito, que crescia para
todos os lados de forma tão livre e... Por alguns segundos, nossos olhos se
cruzaram e eu soube que você era a pessoa certa pra mim. — Joana suspirou
enquanto afastava o cartão de perto do rosto para tentar ler melhor.
— Na época você
estava namorando com outra e eu pensei que não tinha chance, até que eu te vi na
revolta do Ferro’s Bar* e você estava sozinha e quando tudo acabou, nós estávamos
uns cacos e eu me ofereci pra te pagar uma bebida e só começamos a namorar
mesmo um ano depois e... Estou divagando aqui! Vocês devem estar cansados e
querendo ir embora, não é? — um coro de “não”
ecoou pela sala fazendo Joana sorrir e dizer que “já estou quase terminando”.
— Enfim, Lola, meu
amor. 35 anos ao seu lado, criando juntas a nossa menina e enfrentando todo
tipo de problema que surgiu, o que eu estou tentando dizer é que te amo mais do
que posso colocar em palavras e ficaria feliz de passar todos anos que ainda me
restam de vida, ao seu lado. — Lola estava com lágrimas escorrendo pelas
bochechas macias cor de chocolate e por alguns segundos ela não disse nada,
causando um silencio desconfortável nos demais presentes, até que...
— Meu Deus Joana! Mulher
sabe como me deixar sem palavras! E agora o que eu digo, depois dessa
declaração tão linda? — Joana abraçou a esposa e sussurrou em seu ouvido, para
que apenas ela ouvisse. “Só que você
ainda me ama”.
— Você sabe que eu
amo, sua boba! Eu te amo tanto sua velha ranzinza... Que nem consigo ficar
brava por você ter estragado meus votos de bodas. É amor o suficiente pra você?
— em resposta Joana beijou a esposa na testa e depois nos lábios, sob uma chuva
de aplausos dos presentes.
Ainda com algumas
lágrimas teimosas surgindo nos cantos dos olhos, Lola convidou as pessoas a
irem até a mesa onde estava o bolo, para se servirem de um pedaço. Mas antes
Mayara pediu que as duas posassem para uma foto cortando uma fatia.
— É um bolo muito
bonito. — Letícia comentou enquanto guiava a namorada de volta para a cadeira
no canto da sala. Mayara estava reclamando de vertigem e as cólicas estavam
insuportáveis.
— Você nem imagina
a dor de cabeça que me deu pra encomendar... — murmurou a morena e então contou
a namorada sobre a dificuldade na confeitaria. Mas no fim, tudo deu certo, a
noite estava quase acabando e após ela ajudar as mães a dar uma limpada na
casa, iria para o apartamento de Letícia.
— May, sua mãe
Lola disse pra eu trazer pra você. — Paulo estava parado a sua frente com um
considerável pedaço de bolo, o qual a moça pegou e agradeceu e sem pensar
muito, começou a comer e no mesmo segundo o açúcar pareceu bater em cheio lhe
dando alguma energia.
O garoto estava se
divertindo entregando os pedaços de bolo para os convidados e por fim, quando
pegou o seu, foi se sentar entre Marcelo e Diego no sofá, que conversavam com
Francisco e Joaquim e o garoto pensou que, se aquilo foi uma “festa de bodas” ele queria ir em outra
no futuro.
***
Depois de se
despedirem dos últimos convidados, Mayara, auxiliada por Letícia, começou a
recolher os pratos e copos descartáveis e jogá-los dentro de um saco plástico,
quando Joana a impediu de continuar, ao tomar o saco de lixo das suas mãos.
— Nada disso
filha. Você fez muito por nós todos esses dias. Vá pra casa da sua namorada e
amanhã eu e Lola damos um jeito nisso. — a idosa indígena a encarou com um
olhar fixo e profundo e em seguida complementou com um comentário irônico.
— Vocês realmente
acharam que íamos limpar essa bagunça hoje? O lixo não vai a lugar nenhum e nós
duas também não, já vocês... Vão descansar! A gente vai tomar cuidado para não
escorregar nem nada que gente velha costuma fazer. — sob a insistência de
Joana, complementada pela de Lola, a moça acabou cedendo e quando estava no
carro com a namorada, Mayara não conseguia deixar de se sentir chateada.
— Eu não sei nem
como começar... Quem sabe com, obrigada por ter vindo a festa de bodas das
minhas mães e ter segurado a minha mão e me dado apoio quando eu estava com
dor... Ou talvez, me desculpa pelas minhas mães terem praticamente me empurrado
para ir embora com você e eu... Ai não! Eu nunca choro quando estou assim,
juro! Mas dessa vez... — e ela estava chorando mais uma vez naquele dia. Que droga!
— Você não tem de
pedir desculpa por nada, até porque lembra que fui eu quem sugeriu que ia te
levar lá pra casa, pra gente tomar um chocolate quente e ver filmes antigos
embrulhadas no edredom? E sobre ter ido à festa, foi um prazer. As suas mães são
tão fofas, apaixonadas depois de tantos anos juntas. — enquanto o sinal estava
fechado, Letícia fez um agrado no rosto da namorada e secou algumas lágrimas
dela com o polegar e pensou que mesmo chorando, Mayara continuava linda.
— Eu não sou assim
sempre, você sabe né? Afinal estamos saindo há mais de seis meses, mas... Sei
lá, foi tudo junto e daí boom, a gota que faltava apareceu hoje de manhã...
Obrigada por ser tão compreensiva, eu vou te recompensar no futuro, pode ter
certeza. — e então ela sentiu os lábios macios e mornos de Letícia contra os
seus e o contato foi gostoso e agradável e com certeza teria permitido que a
outra aprofundasse o beijo, se o sinal não tivesse aberto e alguém atrás delas
não tivesse buzinado com violência.
Isso as fez rir,
pois nada estragaria aquela sensação de cumplicidade e carinho que estavam
compartilhando agora.
Continua...
Nota do capítulo:
Oi gente,
Neste capitulo a
gente viu a festa de bodas das mães da Mayara e eu vou dizer pra vocês, foi uma
cena tão gostosa de escrever! + também tivemos a May sofrendo os efeitos
mensais (que como eu disse antes e varia de pessoa para pessoa que menstrua,
mas algum dos sintomas todo mundo que passa por isso deve ter reconhecido).
Também teve a
aproximação do Joaquim com o Diego, eu pretendo em breve arrumar mais algumas
amizades pro loirinho, pra ele sair e conversar e tal.
Espero que tenham
gostado desse capítulo e se tudo der certo eu vou retomar o ritmo e atualiza
semanalmente de novo (essa observação é válida para quem está lendo no período
de 19 de Agosto).
*A revolta do
Ferro’s bar aconteceu em 19 de Agosto de 1983 e foi um levante lésbico contra a
ditadura militar. Bar que costumava ser um ponto de encontro da comunidade
lésbica, instigadas pela proibição do dono do bar de elas venderem um boletim
informativo feito para a comunidade lésbica paulista. Após tentativas violentas
de expulsão das mulheres, elas conseguiram com o apoio de grupos LGBT+ e
figuras políticas lerem o manifesto contra a repressão e pelos direitos das
mulheres lésbicas. O levante resultou não só em um pedido de desculpas do dono
do bar, como também a liberação para distribuírem o boletim. A revolta do
Ferro’s bar é considerada a primeira grande manifestação política da comunidade
lésbica no Brasil. (viu, fanfic também é cultura).
Enfim gente,
espero que tenham gostado do capítulo e prometo que vou me esforçar para voltar
a atualizar a história semanalmente. Obrigada por ler até aqui e por favor,
deixe um comentário, sua opinião é muito importante para mim.
Perséfone Tenou
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