Joaquim já estava freqüentando as aulas do curso técnico há duas semanas e apesar de no quesito educacional tudo estar correndo bem, já que ele conseguia entender as matérias, no social as coisas iam um pouco diferente.
Apesar de ser um
curso técnico noturno, a grande maioria dos alunos não tinham mais do que 18
anos e ele com seus 26 se sentia deslocado e notava as expressões de desprezo
dos demais estudantes. Claro que tentou puxar assunto, mas foi rapidamente
descartado tanto pelos outros rapazes quanto pelas moças do curso.
E isso acabou
acertando seu orgulho como ser humano, fazendo-o se dar conta de que, além de Francisco e
Diego, Marcelo e Mayara, que eram por extensão originalmente amigos do
namorado, ele não tinha ninguém com quem sair ou conversar.
Tal pensamento o
fez acordar bem mais cedo do que o normal e ir se instalar na pequena sala de
estar do apartamento, onde ligou a tevê baixinho e deixou os pensamentos
corrosivos tomarem conta da sua mente.
“Por que ele não conseguia fazer amigos?” e “O
que havia de errado com ele?” foram duas perguntas que ficaram martelando sua
mente em loop, ao mesmo tempo em que a ansiedade e os sentimentos depressivos
se alimentavam das suas dúvidas.
***
Já do outro lado
da cidade, Diego teve uma noite de sono agitada e incomoda. Se virou tanto na
cama que em certo momento, por volta das quatro da manhã (quase o mesmo horário
em que Joaquim tinha sua pequena crise depressiva), se levantou e após dar uma
espiada em Paulo, seguiu para a sala-cozinha, no intuito de tomar um copo de
leite para tentar dormir de novo.
Sorriu ao ver que
o menino continuava dormindo tranqüilo, com uma perna parcialmente pendurada
para fora da cama e o boneco de pelúcia do Homem-Aranha embaixo do braço. E
isso o fez pensar que talvez devesse mesmo levar o plano que vinha se repetindo
em sua mente, em prática.
O que aquela
mulher lhe disse no cinema ontem ainda não havia sido digerido, na verdade,
ficou entalado na sua garganta e Diego sabia que só conseguiria seguir em
frente se colocasse um ponto final naquilo!
“Esse tipo de coisa não é permitido aqui,
senhor.” — a voz irritante e anasalada da moça ainda ecoava em sua memória,
junto da expressão de puro asco que ela exibia ao encará-lo.
Lembrou-se de perguntar
o que não era permitido, ele beijar o marido? Ao que a moça, após fazer outra
careta de repudio respondeu que sim, era isso mesmo. “Este é um local familiar e nós prezamos pelo conforto de todos os
nossos clientes” — ela continuou, sem saber que Diego havia aberto a câmera
do celular e estava gravando o áudio.
Tinha dito que,
parecia que isso não se aplicava a família dele ou de outra forma ela não
estaria falando aquilo, ao que a moça esboçou um sorriso de desprezo e
complementou com “A minoria deve se
dobrar a maioria” e óbvio, quando ele ouviu aquela frase, na hora
compreendeu em quem a mulher devia ter votado para presidente no ano anterior.
E foi ali, depois
de ouvir, ao falar que queria falar com o gerente do cinema que ela era “a gerente e digo que aqui é um espaço
familiar e não permitimos esse tipo de manifestação imoral e vergonhosa”,
que ele declarou que jamais retornaria aquele shopping, mas ao relembrar a
situação, se surpreendeu com o autocontrole que expôs em frente ao marido e o
menino, em uma tentativa de não demonstrar sua raiva crescente.
No fim desistiu do
leite e tomou uma xícara de café puro, afinal, já tinha acordado mesmo, porque
tentar voltar a dormir?
***
— Ei, ta tudo bem?
— a voz vinha de longe e parecia abafadas e Joaquim levou alguns segundos para
perceber que havia cochilado no sofá. Acordou sentindo a mão firme de Francisco
apertando seu ombro de leve e ao olhar para trás, o encontrou exibindo uma
expressão preocupada.
— Tá, ta tudo bem
sim, eu só perdi o sono e tentei ver um pouco de tevê e daí acho que
cochilei... — esboçou um sorriso numa tentativa de demonstrar que não havia com
o que se preocupar, mas Francisco continuava o encarando de forma fixa.
— Me dá uns
minutos e eu vou preparar o café e... — parou a frase no meio ao sentir a mão morna e macia do namorado acariciar seu
rosto com delicadeza e em seguida, fazer um agrado em seus cabelos.
— Eu faço o café,
descansa mais um pouco. Tá sendo puxado pra você, trabalhar e estudar a noite.
— Joaquim forçou outro sorriso e pensou que na verdade estes não eram seus
maiores problemas, mas optou por não contar ao outro. Tinha algumas coisas que
ele queria tentar resolver sozinho.
***
— Bom dia. Como você está? — Marcelo perguntou
enquanto abraçava o marido e lhe dava um beijo suave na curva do pescoço,
ouvindo um risinho satisfeito em resposta.
— Um pouco melhor
do que ontem, mas estive pensando... E acho que vou fazer um B.O. por homofobia
contra aquela gerente do cinema. — informou enquanto tomava um gole do que era
sua segunda xícara de café.
— Quer que eu vá
com você? — escutou o marido perguntar, ao que respondeu que não precisava, mas
que agradeceria se ele pudesse levar o menino para a escola.
— Não sei quanto
tempo vai demorar e daí talvez quando eu saia já esteja na hora de eu ir pra
imobiliária. Mas sabe, mesmo que não dê em nada, só de talvez servir para dar
um susto naquela homofóbica escrota, pra mim já é o bastante, porque sabe o que
ela me disse? — e então contou sobre a maldita frase que aquele ser repugnante
que estava atualmente no poder repetia a exaustão e no quanto isso lhe deu
ânsia de vomito, ao ouvir sendo reproduzido por outra pessoa.
— Não me
surpreende. Só podia ser eleitora daquele saco de lixo ambulante. Mas vá fazer
o B.O. sim, a gente tem de mostrar pra esse tipo de criatura que falar coisas
abomináveis assim, tem punição e que não seremos silenciados. — ao olhar para
Marcelo, Diego sentiu algo parecido com um calor no peito e pensou mais uma vez
o quanto amava aquele homem.
— Certo, eu vou
então... Você... Leva o Paulo pra escola? — sua ansiedade o obrigava a repetir
a pergunta, mesmo sabendo que o outro faria aquilo sem que precisasse confirmar
uma segunda vez. Em resposta, recebeu um beijo suave ser dado em sua têmpora
esquerda e ouviu Marcelo sussurrar que ele “não
precisava se preocupar”.
***
Joaquim suspirou
desanimado enquanto tomava um gole da xícara de café. Aproveitou para fazer
isso enquanto o namorado foi até o quarto buscar alguma coisa. Ele não queria
preocupar Francisco, que estava lidando com uma devolução grande de livros
didático na editora, que segundo a escola, vieram com erros grandes de grafia e
por isso o rapaz estava saindo bem mais cedo para trabalhar naquela semana.
O loiro pensou que
talvez a vida amorosa deles estivesse esfriando e isso o preocupava, pois lá no
fundo da sua mente, vinha o pensamento de que a culpa era sua, apesar de
Francisco jamais ter dado qualquer sinal disso.
— Pronto Quim? —
se sentiu trazido de volta a realidade de repente e piscou algumas vezes,
tentando se situar, foi só então que
percebeu que ainda segurava a xícara de café a alguns centímetros da boca e na
outra mão, o pedaço de torrada meio mordida.
— Claro! Vamos. —
forçou o sorriso mais uma vez e após colocar a louça suja na pia e descartar os
restos do café da manhã, se dirigiu até a pequena sala de estar, para buscar
seu casaco e então sentiu-se ser abraçado com carinho pelas costas.
— Tá acontecendo
alguma coisa, Quim? Você ta tão distante... — o rapaz respirou fundo, buscando
uma forma de responder sem ter de mentir, mas também sem precisar expor o que
vinha “mastigando suas entranhas”
como dizia sua mãe.
— Acho que só tou
cansado, sabe? O curso, o trabalho e a gente quase não têm tipo muito tempo
juntos... Não que eu esteja cobrando nem nada do tipo! — se apressou em
complementar, com receio de ser grosseiro. Não conseguia evitar, eram seqüelas
daquele relacionamento abusivo em que esteve antes, onde cada passo seu devia
ser cuidadosamente calculado para não irritar o (então na época) namorado.
— Eu acho que você
não ta falando toda a verdade, mas não vou te forçar. Você sabe que eu sempre
vou te apoiar, né? — uma batida falhou no peito de Joaquim ao ouvir aquilo e
então ele se virou dentro do abraço e beijou o namorado com paixão, para em
seguida sussurrar contra o ouvido dele “Sei
sim. E esse é mais um motivo pelo qual eu te amo”.
Francisco olhou
pro rosto bonitinho do namorado, que começava a corar e sorriu. Havia algo que
Joaquim estava lhe escondendo, mas ele sabia que o loiro iria falar, na hora
certa, quando sentisse que estava pronto.
— Então vamos lá,
que hoje eu tenho de entrar mais cedo na editora. Desculpa te fazer sair assim
tão cedo pra abrir a loja... — viu o namorado negar com um meneio curto de
cabeça e sorrir e desta vez, aquele sorriso, pareceu espontâneo.
***
Antes de ir até a
delegacia, Diego fez uma breve pesquisa online, claro. Afinal, não queria
passar por mais estresse ao tentar denunciar uma situação na qual ele era a
vitima. E lá viu algumas dicas básicas, uma delas era “Nunca vá fazer um boletim de ocorrência sem um acompanhante”.
Também descobriu
que existia uma delegacia específica para crimes raciais e de orientação sexual.
Chamava-se “DECRADI”* e existia há algum tempo já, mas só há alguns anos
passaram a registrar crimes de LGBTfobia. Mesmo assim, isso lhe deu algum
alivio, pois acreditou que ali talvez ele não sofresse com o famoso “descaso
policial”. Só tinha um detalhe, o lugar ficava no chamado “Centro histórico da
cidade, que não era um bairro muito... Seguro. Por isso, Diego pensou em talvez
ir de Uber. Mas, precisaria conversar com Marcelo antes.
— Diego, tou indo pra escola! — teve sua
atenção atraída pela voz animada do irmãozinho, que chegava à cozinha trajando
o uniforme e com a mochilinha do Homem-Aranha nas costas.
— Ô rapaz, espera
uns minutos que eu vou preparar seu lanche, ta? — se levantou e começou a
montar um sanduíche e pegou uma caixinha de suco na geladeira e enquanto
colocava tudo na mochila do menino, perguntou ao marido se ele poderia
acompanhá-lo quando voltasse de levar o garoto.
— Claro, mas,
algum problema? — explicou de forma meio disfarçada que não, mas viu que era
bom ter companhia quando fosse “aonde
tinha de ir” e mal terminou a frase e ouviu o irmãozinho perguntar “Onde você vai?”
— Eu vou...
Resolver umas coisas de adulto e você, mocinho,vai pra escola, ta bom? — fez um
agrado no cabelo cacheado do menino enquanto devolvia a mochila para ele.
— Mas... Tá tudo
bem, né? — Os grandes olhos castanhos do menino fixos nele, fizeram Diego se
sentir mal por mentir, mas de que adiantaria explicar o que ia fazer, para uma
criança tão pequena?
— Tá tudo bem,
rapaz. É só coisa chata de adulto mesmo. Agora me dá um abraço aqui e vai lá...
— abraçou o irmãozinho por um período um pouco mais longo do que o normal, pois
queria que o garoto soubesse que era amado e querido.
***
Entrou na loja de
sabonetes, mas decidiu que só iria abrir as portas no horário normal, dali duas
horas. Enquanto isso, Joaquim ficou mexendo no celular, tentando distrair a
cabeça daqueles pensamentos torturantes que vinham ocupando o espaço de um
triplex em sua mente.
A ultima vez que
tentaram fazer algo mais intimo, Francisco acabou não conseguindo segurar muito
tempo e então... Ele riu e a coisa esfriou. Lembrar da cena fez o loiro soltar
um risinho curto, mas logo em seguida se sentiu frustrado.
Claro que sexo não
era tudo na vida de um casal, devia haver gente por ai que vivia muito bem sem
quase nunca transar, mas ele carregava aquele estigma do relacionamento
anterior, de que se não cumprisse certos requisitos, não era digno de
permanecer ao lado da outra pessoa.
— Mas o Francisco
não é o Jonas! — declarou irritado para a loja vazia e tal pensamento pareceu
funcionar como um cala boca mental para aquela torrente de pensamentos cruéis
que vinham o incomodando desde que aquela idéia de que não tinha amigos o
acordou.
As duas coisas, o
receio de ser um parceiro incompleto para o namorado e a sensação de não ter
amizades verdadeiras haviam se unido em um enorme monstro ácido que se ocupava
de corroer qualquer grama de alegria que o rapaz ainda pudesse ter.
Por fim ele
suspirou fundo, assim como tinha feito lá no apartamento e olhou pela vitrine
da loja o movimento da rua que começava a aumentar, informando que seria
prudente abrir as portas.
***
Foram de uber até
a tal delegacia. Assim que desceu do carro, Diego sentiu o coração disparar no
peito. Nunca havia entrado numa delegacia na vida, nem mesmo em uma de crimes
raciais, então estava apavorado.
Quando se
aproximaram do guichê, havia um policial com cara de tédio que os atendeu com
educação, mas de forma meio mecânica, mas tudo bem, para Diego, não olhando
para ele como se fossem aberrações, já era um motivo a se comemorar.
Esperaram por um
tempo que pareceu longo demais, apesar de seu celular informa que foi apenas 30
minutos. Foram levados até o delegado de plantão que após ouvir a narrativa de
Diego, chamou o escrivão para lavras o boletim.
— Preciso que o
senhor seja o mais exato possível e quero lembrá-lo de que este boletim é um
documento público, por isso, se o senhor mentir, estará colocando a si próprio
em problemas com a lei. — Diego concordou com um gesto de cabeça e em seguida
começou a relatar para o escrivão. Às suas costas, Marcelo permanecia em
silencio.
— Ontem a tarde eu
fui com meu marido e meu irmão caçula ao cinema do shopping... — falar o nome
do tal lugar lhe deu embrulho no estomago, mas ele seguiu em frente, porque não
podia mais recuar agora.
— Quando estávamos
saindo da sala de cinema, eu troquei um beijo com meu marido... — apontou para
Marcelo às suas costas e então continuou — e então, uma moça, que disse ser a
gerente do cinema, veio me repreender... Eu gravei o que ela disse... Um
segundo e vou colocar. — rodou o arquivo de áudio e ao ouvir aquela voz
anasalada de novo, sentiu um misto de irritação e ódio crescentes.
— Poderia nos dar
o nome ou descrever esta mulher? — o escrivão perguntou, ao que Diego disse que
não sabia o nome completo, apenas o primeiro, que estava numa plaquinha que ela
usava no peito do colete. “Daiany”,
frisou o “Y” no final do nome.
— Ela era baixa,
talvez 1,65cm, pele parda, cabelo castanho escuro; não sei dizer o cumprimento,
porque estavam presos em um coque, um pouco gorda, com rosto redondo, olhos
escuros. — suspirou cansado, reviver aquela situação de ontem e ter de ouvir
aquele áudio asqueroso pela segunda vez fez seu estomago afundar alguns
centímetros.
— Certo, está tudo
registrado, incluindo a transcrição do áudio. Aqui está uma cópia do boletim.
Ele será agora encaminhado ao ministério publico que irá julgar a relevância do
caso. O senhor aguarde notícias no futuro. — o delegado, um homem meio
atarracado na casa dos 50 e poucos, com uma série de linhas de expressões pelo
rosto, se levantou de trás da mesa e os conduziu para fora da sala. Diego
pensou que a pior parte de ter ido fazer o boletim, foi ter de ouvir novamente
aquele áudio medonho, não tanto o boletim em si.
Ao saírem do
prédio, Diego, que já havia chamado outro uber, dobrou a sua cópia do boletim e
o enfiou no bolso traseiro da calça, mas não sem antes seus olhos baterem
naquele trecho quase no fim da folha, onde estava escrito “histórico” e mesmo sem querer, leu o trecho da transcrição “As minorias devem se curvar as maiorias”.
Enquanto enfiava o
papel no bolso, no entanto,ele pensou “Hoje
não, dona”.
Continua...
Nota da autora:
Oi gente, mais um
capítulo para vocês.
E o Diego foi
fazer o boletim!
Eu fiz uma breve
pesquisa sobre denuncias de homofobia/LGBTfobia e levando em consideração que a
história se passa em 2019 e que registros online só se tornaram mais populares
a partir de 2020, achei melhor fazer os personagens irem até a delegacia
presencialmente.
A DECRADI
(Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância) existe e está situada
na Rua Brigadeiro Tobias, 527, Centro Histórico de São Paulo. O local existe
desde 2006. Atualmente, se sofreu LGBTfobia/Racismo a pessoa também pode
preencher um boletim de ocorrência virtualmente. Tentei não caricaturizar muito
o tratamento quando se vai a uma delegacia, por isso não teve policiais
escrotos e abertamente LGBTfóbicos. Os dados e informações da cena do boletim
de ocorrência foram inspirados em conteúdos reais, inclusive o detalhe sobre
mentir em um boletim de ocorrência ser crime.
Ah e só uma
observação, quando eu falei que o Centro Histórico de SP não era um lugar muito
seguro, fiz isso com base nas declarações de uma amiga que mora na cidade (e
não, ela não mora em um dos bairros chiques). Ela me disse que este bairro tem
menos policiamento, daí, menos segurança para quem transita por lá. – nada do
que é escrito nesta história, no quesito informações realistas, foram feitas
com base nas “vozes da minha cabeça”
– tudo aqui tem fonte e confirmação.
E do outro lado,
tivemos Francisco e Joaquim passando por uma pequena crise no relacionamento.
Agora, algumas pessoas podem ter achado o comportamento do Joaquim meio
exagerado, mas quando se vive dentro de um relacionamento abusivo, como foi o
caso dele, e finalmente a pessoa sair e começa um relacionamento saudável,
ficam seqüelas profundas e que muitas vezes são difíceis de se livrar.
Enfim, espero que
vocês tenham gostado do capitulo (e que ele não tenha ficado muito
didático/chato). Deixe um comentário se puder, eles são muito importantes para
eu saber o que vocês estão achando.
Até o próximo
capítulo!
Perséfone Tenou.
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