sábado, 25 de maio de 2024

Lar é onde o coração está - capítulo 73

 Joaquim já estava freqüentando as aulas do curso técnico há duas semanas e apesar de no quesito educacional tudo estar correndo bem, já que ele conseguia entender as matérias, no social as coisas iam um pouco diferente.


Apesar de ser um curso técnico noturno, a grande maioria dos alunos não tinham mais do que 18 anos e ele com seus 26 se sentia deslocado e notava as expressões de desprezo dos demais estudantes. Claro que tentou puxar assunto, mas foi rapidamente descartado tanto pelos outros rapazes quanto pelas moças do curso.

E isso acabou acertando seu orgulho como ser humano, fazendo-o  se dar conta de que, além de Francisco e Diego, Marcelo e Mayara, que eram por extensão originalmente amigos do namorado, ele não tinha ninguém com quem sair ou conversar.

Tal pensamento o fez acordar bem mais cedo do que o normal e ir se instalar na pequena sala de estar do apartamento, onde ligou a tevê baixinho e deixou os pensamentos corrosivos tomarem conta da sua mente.

 “Por que ele não conseguia fazer amigos?” e “O que havia de errado com ele?” foram duas perguntas que ficaram martelando sua mente em loop, ao mesmo tempo em que a ansiedade e os sentimentos depressivos se alimentavam das suas dúvidas.

***

Já do outro lado da cidade, Diego teve uma noite de sono agitada e incomoda. Se virou tanto na cama que em certo momento, por volta das quatro da manhã (quase o mesmo horário em que Joaquim tinha sua pequena crise depressiva), se levantou e após dar uma espiada em Paulo, seguiu para a sala-cozinha, no intuito de tomar um copo de leite para tentar dormir de novo.

Sorriu ao ver que o menino continuava dormindo tranqüilo, com uma perna parcialmente pendurada para fora da cama e o boneco de pelúcia do Homem-Aranha embaixo do braço. E isso o fez pensar que talvez devesse mesmo levar o plano que vinha se repetindo em sua mente, em prática.

O que aquela mulher lhe disse no cinema ontem ainda não havia sido digerido, na verdade, ficou entalado na sua garganta e Diego sabia que só conseguiria seguir em frente se colocasse um ponto final naquilo!

Esse tipo de coisa não é permitido aqui, senhor.” — a voz irritante e anasalada da moça ainda ecoava em sua memória, junto da expressão de puro asco que ela exibia ao encará-lo.

Lembrou-se de perguntar o que não era permitido, ele beijar o marido? Ao que a moça, após fazer outra careta de repudio respondeu que sim, era isso mesmo. “Este é um local familiar e nós prezamos pelo conforto de todos os nossos clientes” — ela continuou, sem saber que Diego havia aberto a câmera do celular e estava gravando o áudio.

Tinha dito que, parecia que isso não se aplicava a família dele ou de outra forma ela não estaria falando aquilo, ao que a moça esboçou um sorriso de desprezo e complementou com “A minoria deve se dobrar a maioria” e óbvio, quando ele ouviu aquela frase, na hora compreendeu em quem a mulher devia ter votado para presidente no ano anterior.

E foi ali, depois de ouvir, ao falar que queria falar com o gerente do cinema que ela era “a gerente e digo que aqui é um espaço familiar e não permitimos esse tipo de manifestação imoral e vergonhosa”, que ele declarou que jamais retornaria aquele shopping, mas ao relembrar a situação, se surpreendeu com o autocontrole que expôs em frente ao marido e o menino, em uma tentativa de não demonstrar sua raiva crescente.

No fim desistiu do leite e tomou uma xícara de café puro, afinal, já tinha acordado mesmo, porque tentar voltar a dormir?

***

— Ei, ta tudo bem? — a voz vinha de longe e parecia abafadas e Joaquim levou alguns segundos para perceber que havia cochilado no sofá. Acordou sentindo a mão firme de Francisco apertando seu ombro de leve e ao olhar para trás, o encontrou exibindo uma expressão preocupada.

— Tá, ta tudo bem sim, eu só perdi o sono e tentei ver um pouco de tevê e daí acho que cochilei... — esboçou um sorriso numa tentativa de demonstrar que não havia com o que se preocupar, mas Francisco continuava o encarando de forma fixa.

— Me dá uns minutos e eu vou preparar o café e... — parou a frase no meio ao sentir  a mão morna e macia do namorado acariciar seu rosto com delicadeza e em seguida, fazer um agrado em seus cabelos.

— Eu faço o café, descansa mais um pouco. Tá sendo puxado pra você, trabalhar e estudar a noite. — Joaquim forçou outro sorriso e pensou que na verdade estes não eram seus maiores problemas, mas optou por não contar ao outro. Tinha algumas coisas que ele queria tentar resolver sozinho.

***

  Bom dia. Como você está? — Marcelo perguntou enquanto abraçava o marido e lhe dava um beijo suave na curva do pescoço, ouvindo um risinho satisfeito em resposta.

— Um pouco melhor do que ontem, mas estive pensando... E acho que vou fazer um B.O. por homofobia contra aquela gerente do cinema. — informou enquanto tomava um gole do que era sua segunda xícara de café. 

— Quer que eu vá com você? — escutou o marido perguntar, ao que respondeu que não precisava, mas que agradeceria se ele pudesse levar o menino para a escola.

— Não sei quanto tempo vai demorar e daí talvez quando eu saia já esteja na hora de eu ir pra imobiliária. Mas sabe, mesmo que não dê em nada, só de talvez servir para dar um susto naquela homofóbica escrota, pra mim já é o bastante, porque sabe o que ela me disse? — e então contou sobre a maldita frase que aquele ser repugnante que estava atualmente no poder repetia a exaustão e no quanto isso lhe deu ânsia de vomito, ao ouvir sendo reproduzido por outra pessoa.

— Não me surpreende. Só podia ser eleitora daquele saco de lixo ambulante. Mas vá fazer o B.O. sim, a gente tem de mostrar pra esse tipo de criatura que falar coisas abomináveis assim, tem punição e que não seremos silenciados. — ao olhar para Marcelo, Diego sentiu algo parecido com um calor no peito e pensou mais uma vez o quanto amava aquele homem.

— Certo, eu vou então... Você... Leva o Paulo pra escola? — sua ansiedade o obrigava a repetir a pergunta, mesmo sabendo que o outro faria aquilo sem que precisasse confirmar uma segunda vez. Em resposta, recebeu um beijo suave ser dado em sua têmpora esquerda e ouviu Marcelo sussurrar que ele “não precisava se preocupar”.  

***

Joaquim suspirou desanimado enquanto tomava um gole da xícara de café. Aproveitou para fazer isso enquanto o namorado foi até o quarto buscar alguma coisa. Ele não queria preocupar Francisco, que estava lidando com uma devolução grande de livros didático na editora, que segundo a escola, vieram com erros grandes de grafia e por isso o rapaz estava saindo bem mais cedo para trabalhar naquela semana.

O loiro pensou que talvez a vida amorosa deles estivesse esfriando e isso o preocupava, pois lá no fundo da sua mente, vinha o pensamento de que a culpa era sua, apesar de Francisco jamais ter dado qualquer sinal disso.

— Pronto Quim? — se sentiu trazido de volta a realidade de repente e piscou algumas vezes, tentando se situar,  foi só então que percebeu que ainda segurava a xícara de café a alguns centímetros da boca e na outra mão, o pedaço de torrada meio mordida.

— Claro! Vamos. — forçou o sorriso mais uma vez e após colocar a louça suja na pia e descartar os restos do café da manhã, se dirigiu até a pequena sala de estar, para buscar seu casaco e então sentiu-se ser abraçado com carinho pelas costas.

— Tá acontecendo alguma coisa, Quim? Você ta tão distante... — o rapaz respirou fundo, buscando uma forma de responder sem ter de mentir, mas também sem precisar expor o que vinha “mastigando suas entranhas” como dizia sua mãe.

— Acho que só tou cansado, sabe? O curso, o trabalho e a gente quase não têm tipo muito tempo juntos... Não que eu esteja cobrando nem nada do tipo! — se apressou em complementar, com receio de ser grosseiro. Não conseguia evitar, eram seqüelas daquele relacionamento abusivo em que esteve antes, onde cada passo seu devia ser cuidadosamente calculado para não irritar o (então na época) namorado.

— Eu acho que você não ta falando toda a verdade, mas não vou te forçar. Você sabe que eu sempre vou te apoiar, né? — uma batida falhou no peito de Joaquim ao ouvir aquilo e então ele se virou dentro do abraço e beijou o namorado com paixão, para em seguida sussurrar contra o ouvido dele “Sei sim. E esse é mais um motivo pelo qual eu te amo”. 

Francisco olhou pro rosto bonitinho do namorado, que começava a corar e sorriu. Havia algo que Joaquim estava lhe escondendo, mas ele sabia que o loiro iria falar, na hora certa, quando sentisse que estava pronto.

— Então vamos lá, que hoje eu tenho de entrar mais cedo na editora. Desculpa te fazer sair assim tão cedo pra abrir a loja... — viu o namorado negar com um meneio curto de cabeça e sorrir e desta vez, aquele sorriso, pareceu espontâneo.  

***

Antes de ir até a delegacia, Diego fez uma breve pesquisa online, claro. Afinal, não queria passar por mais estresse ao tentar denunciar uma situação na qual ele era a vitima. E lá viu algumas dicas básicas, uma delas era “Nunca vá fazer um boletim de ocorrência sem um acompanhante”.

Também descobriu que existia uma delegacia específica para crimes raciais e de orientação sexual. Chamava-se “DECRADI”* e existia há algum tempo já, mas só há alguns anos passaram a registrar crimes de LGBTfobia. Mesmo assim, isso lhe deu algum alivio, pois acreditou que ali talvez ele não sofresse com o famoso “descaso policial”. Só tinha um detalhe, o lugar ficava no chamado “Centro histórico da cidade, que não era um bairro muito... Seguro. Por isso, Diego pensou em talvez ir de Uber. Mas, precisaria conversar com Marcelo antes.

 — Diego, tou indo pra escola! — teve sua atenção atraída pela voz animada do irmãozinho, que chegava à cozinha trajando o uniforme e com a mochilinha do Homem-Aranha nas costas.

— Ô rapaz, espera uns minutos que eu vou preparar seu lanche, ta? — se levantou e começou a montar um sanduíche e pegou uma caixinha de suco na geladeira e enquanto colocava tudo na mochila do menino, perguntou ao marido se ele poderia acompanhá-lo quando voltasse de levar o garoto.

— Claro, mas, algum problema? — explicou de forma meio disfarçada que não, mas viu que era bom ter companhia quando fosse “aonde tinha de ir” e mal terminou a frase e ouviu o irmãozinho perguntar “Onde você vai? 

— Eu vou... Resolver umas coisas de adulto e você, mocinho,vai pra escola, ta bom? — fez um agrado no cabelo cacheado do menino enquanto devolvia a mochila para ele.

— Mas... Tá tudo bem, né? — Os grandes olhos castanhos do menino fixos nele, fizeram Diego se sentir mal por mentir, mas de que adiantaria explicar o que ia fazer, para uma criança tão pequena?

— Tá tudo bem, rapaz. É só coisa chata de adulto mesmo. Agora me dá um abraço aqui e vai lá... — abraçou o irmãozinho por um período um pouco mais longo do que o normal, pois queria que o garoto soubesse que era amado e querido.

***

Entrou na loja de sabonetes, mas decidiu que só iria abrir as portas no horário normal, dali duas horas. Enquanto isso, Joaquim ficou mexendo no celular, tentando distrair a cabeça daqueles pensamentos torturantes que vinham ocupando o espaço de um triplex em sua mente.

A ultima vez que tentaram fazer algo mais intimo, Francisco acabou não conseguindo segurar muito tempo e então... Ele riu e a coisa esfriou. Lembrar da cena fez o loiro soltar um risinho curto, mas logo em seguida se sentiu frustrado.

Claro que sexo não era tudo na vida de um casal, devia haver gente por ai que vivia muito bem sem quase nunca transar, mas ele carregava aquele estigma do relacionamento anterior, de que se não cumprisse certos requisitos, não era digno de permanecer ao lado da outra pessoa.

— Mas o Francisco não é o Jonas! — declarou irritado para a loja vazia e tal pensamento pareceu funcionar como um cala boca mental para aquela torrente de pensamentos cruéis que vinham o incomodando desde que aquela idéia de que não tinha amigos o acordou.

As duas coisas, o receio de ser um parceiro incompleto para o namorado e a sensação de não ter amizades verdadeiras haviam se unido em um enorme monstro ácido que se ocupava de corroer qualquer grama de alegria que o rapaz ainda pudesse ter.

Por fim ele suspirou fundo, assim como tinha feito lá no apartamento e olhou pela vitrine da loja o movimento da rua que começava a aumentar, informando que seria prudente abrir as portas.

***

Foram de uber até a tal delegacia. Assim que desceu do carro, Diego sentiu o coração disparar no peito. Nunca havia entrado numa delegacia na vida, nem mesmo em uma de crimes raciais, então estava apavorado.

Quando se aproximaram do guichê, havia um policial com cara de tédio que os atendeu com educação, mas de forma meio mecânica, mas tudo bem, para Diego, não olhando para ele como se fossem aberrações, já era um motivo a se comemorar.

Esperaram por um tempo que pareceu longo demais, apesar de seu celular informa que foi apenas 30 minutos. Foram levados até o delegado de plantão que após ouvir a narrativa de Diego, chamou o escrivão para lavras o boletim.

— Preciso que o senhor seja o mais exato possível e quero lembrá-lo de que este boletim é um documento público, por isso, se o senhor mentir, estará colocando a si próprio em problemas com a lei. — Diego concordou com um gesto de cabeça e em seguida começou a relatar para o escrivão. Às suas costas, Marcelo permanecia em silencio.

— Ontem a tarde eu fui com meu marido e meu irmão caçula ao cinema do shopping... — falar o nome do tal lugar lhe deu embrulho no estomago, mas ele seguiu em frente, porque não podia mais recuar agora.

— Quando estávamos saindo da sala de cinema, eu troquei um beijo com meu marido... — apontou para Marcelo às suas costas e então continuou — e então, uma moça, que disse ser a gerente do cinema, veio me repreender... Eu gravei o que ela disse... Um segundo e vou colocar. — rodou o arquivo de áudio e ao ouvir aquela voz anasalada de novo, sentiu um misto de irritação e ódio crescentes.

— Poderia nos dar o nome ou descrever esta mulher? — o escrivão perguntou, ao que Diego disse que não sabia o nome completo, apenas o primeiro, que estava numa plaquinha que ela usava no peito do colete. “Daiany”, frisou o “Y” no final do nome.

— Ela era baixa, talvez 1,65cm, pele parda, cabelo castanho escuro; não sei dizer o cumprimento, porque estavam presos em um coque, um pouco gorda, com rosto redondo, olhos escuros. — suspirou cansado, reviver aquela situação de ontem e ter de ouvir aquele áudio asqueroso pela segunda vez fez seu estomago afundar alguns centímetros.

— Certo, está tudo registrado, incluindo a transcrição do áudio. Aqui está uma cópia do boletim. Ele será agora encaminhado ao ministério publico que irá julgar a relevância do caso. O senhor aguarde notícias no futuro. — o delegado, um homem meio atarracado na casa dos 50 e poucos, com uma série de linhas de expressões pelo rosto, se levantou de trás da mesa e os conduziu para fora da sala. Diego pensou que a pior parte de ter ido fazer o boletim, foi ter de ouvir novamente aquele áudio medonho, não tanto o boletim em si.

Ao saírem do prédio, Diego, que já havia chamado outro uber, dobrou a sua cópia do boletim e o enfiou no bolso traseiro da calça, mas não sem antes seus olhos baterem naquele trecho quase no fim da folha, onde estava escrito “histórico” e mesmo sem querer, leu o trecho da transcrição “As minorias devem se curvar as maiorias”.

Enquanto enfiava o papel no bolso, no entanto,ele pensou “Hoje não, dona”.

 

Continua...

 

Nota da autora:

Oi gente, mais um capítulo para vocês.

E o Diego foi fazer o boletim!

Eu fiz uma breve pesquisa sobre denuncias de homofobia/LGBTfobia e levando em consideração que a história se passa em 2019 e que registros online só se tornaram mais populares a partir de 2020, achei melhor fazer os personagens irem até a delegacia presencialmente.

A DECRADI (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância) existe e está situada na Rua Brigadeiro Tobias, 527, Centro Histórico de São Paulo. O local existe desde 2006. Atualmente, se sofreu LGBTfobia/Racismo a pessoa também pode preencher um boletim de ocorrência virtualmente. Tentei não caricaturizar muito o tratamento quando se vai a uma delegacia, por isso não teve policiais escrotos e abertamente LGBTfóbicos. Os dados e informações da cena do boletim de ocorrência foram inspirados em conteúdos reais, inclusive o detalhe sobre mentir em um boletim de ocorrência ser crime.

Ah e só uma observação, quando eu falei que o Centro Histórico de SP não era um lugar muito seguro, fiz isso com base nas declarações de uma amiga que mora na cidade (e não, ela não mora em um dos bairros chiques). Ela me disse que este bairro tem menos policiamento, daí, menos segurança para quem transita por lá. – nada do que é escrito nesta história, no quesito informações realistas, foram feitas com base nas “vozes da minha cabeça” – tudo aqui tem fonte e confirmação.

E do outro lado, tivemos Francisco e Joaquim passando por uma pequena crise no relacionamento. Agora, algumas pessoas podem ter achado o comportamento do Joaquim meio exagerado, mas quando se vive dentro de um relacionamento abusivo, como foi o caso dele, e finalmente a pessoa sair e começa um relacionamento saudável, ficam seqüelas profundas e que muitas vezes são difíceis de se livrar.

Enfim, espero que vocês tenham gostado do capitulo (e que ele não tenha ficado muito didático/chato). Deixe um comentário se puder, eles são muito importantes para eu saber o que vocês estão achando.

Até o próximo capítulo!

Perséfone Tenou.

 

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